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Figuras e Gestos da Delicadeza
por Denilson Lopes (UFRJ)
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Perdoem-me a autoreferência, mas quando dei nome ao meu último livro de A
Delicadeza, o título veio no fim e não no início da escrita; mas de certa forma o
título A Delicadeza foi adequado não ao livro mas a uma procura pessoal.
Procura que ainda não acabou nem se exauriu.
Os historiadores na esteira da École des Annales mapearam o amor, o
medo, entre outros afetos, sentimentos e sensibilidades. Desconheço uma
história da delicadeza, contudo, vislumbro de forma errática um campo
semântico constituído por obras e fragmentos de obras que me chamaram e
chamam atenção. Trata-se certamente de uma constelação aberta, em trânsito
por tempos e culturas.
Poderia ser a delicadeza uma prima da polidez? Sem dúvida. Contudo, a
delicadeza não se vincula a códigos aprendidos para uma distinção social e
simbólica. E como sabemos, a polidez pode esconder ou a acentuar a mais
brutal grosseria.
Certamente, a delicadeza constrói uma cena que passa longe das
confissões desmesuradas que nos assolam desde os românticos aos reality
shows. Nenhuma dor ou alegria valem tanto à pena assim. Sem ser um código
de etiqueta nem de ética; a delicadeza caminha por uma genealogia distante
do excesso, categoria que fascinou tanto a modernidade, e se encarnou em
tantas manifestações de vanguardas, traduzida como estratégias de confronto,
ruptura e choque.
Minha primeira percepção da delicadeza vem da melancolia. Suave
tristeza decorrente da passagem incessante do tempo, a melancolia, como a
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Professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
pesquisador do CNPq e autor de No Coração do Mundo: Paisagens Transcuturais (Rio
de Janeiro, Rocco, 2012), A delicadeza: estética, experiência e paisagens (Brasília,
EdUnB, 2007), O homem que amava rapazes e outros ensaios (Rio de Janeiro,
Aeroplano, 2002) e Nós os mortos: melancolia e neo-barroco (Rio de Janeiro, 7Letras,
1999), organizador, ao lado de Andréa França, de Cinema, globalização e
interculturalidade (Chapecó, Argos, 2010) e organizador de O cinema dos anos 90
(Chapecó, Argos, 2005).
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compreendeu Walter Benjamin, é uma sensibilidade que tenta apreender as
coisas que constantemente se rarefazem, um olhar estético em direção ao
pequeno. Falar em beleza é revalorizar as sensações das pequenas coisas,
algo que talvez tenhamos desaprendido a valorizar.
Ainda para Benjamin, a melancolia era uma contrapartida, não uma inimiga
da revolução. Contudo, frente a revoluções; a delicadeza, também prima da
melancolia, impõe uma certa reserva, não por ceticismo, certamente também
não por conservadorismo, mas simplesmente por suspeita das grandes
transformações em curto prazo de tempo.
A delicadeza seria no máximo, para usar uma expressão de Caio
Fernando Abreu, uma “modesta alegria”, sem falsos pudores nem necessidade
de ser afirmada, de ser dita. Uma força menor, um gesto rumo ao menor.
Menor não por ser desimportante, mas por se afastar dos gestos retóricos,
grandiloquentes, convencidos de sua importância. Na sociedade de máxima
visibilidade em que vivemos a delicadeza reside e resiste na procura de
sutileza, do meio-tom, daquilo que mal se vê, como na imagem da artista
Brigida Baltar colhendo orvalho num dia enevoado em serra carioca. Por que
colher algo tão insignificante? Algo que só se substancializa, se liquefaz devido
a um discreto aumento de temperatura e que logo também desaparecerá
voltando ao ar de onde veio. A quem pode interessar esse gesto? É o que não
cesso de me perguntar ao escrever.
Ao contrário da busca desesperada de visibilidade midiática ou política,
um sutil deslocamento diante do excesso de imagens, sons, idéias e
informações.
No poema “Canção da Torre Mais Alta”, Rimbaud afirma
surpreendentemente que perdeu sua vida por delicadeza e não pelo
desregramento de todos os sentidos. Apesar da delicadeza não exigir tamanho
gesto; talvez, no poema, Rimbaud pressentisse que mesmo a vida (quiçá
talvez sua obra) não fosse tão grande coisa assim caso fosse perdida. Ela, vida
ou obra, se perde quer percebamos ou não. E talvez assim seja o melhor. Não
sendo grande coisa - a obra, a vida - o melhor e o mais difícil seriam “falar o
menos possível” como diz Clarice Lispector na sua conhecida última entrevista
à TV Cultura antes de morrer.
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Todavia, a contenção da delicadeza hoje em dia não seria tanto a
recusa do verbo, da voz, da representação. Figura da rarefação, a delicadeza
se distancia da nostalgia romântica idealizadora do passado mas compartilha
com ela a afetividade sentida diante da transitoriedade diante de todos os
crepúsculos. Por sentir o mundo sem grandes contrastes, embates; a
delicadeza se firma no neutro, no cinza, no indistinto não no dilaceramento
trágico, dramático, melodramático.
O neutro, portanto, seria a base de um drama desdramatizado, ao invés
do conflito que move a ação, na esteira da poética aristotélica. Nos filmes de
Yasujiro Ozu, o diálogo não é o do olho no olho, das verdades a serem
desenterradas e ditas, como nos filmes de Ingmar Bergman. O diálogo em Pai
e Filha é tanto com espaço e objetos quanto entre as pessoas que estão nele.
Talvez seja dessa forma que melhor deve ser compreendida a formalidade das
relações pessoais nos filmes de Ozu, não como espaço de fingimento e
repressão, mas associada a um "estado fraco" (BARTHES, 2003: 151), a uma
"existência mínima" (BARTHES, 2003: 157). Se a desdramatização em Beckett e
em Mouchette de Bresson seguem o caminho da aspereza, da secura que
pode sufocar; em Pai e Filha, a desdramatização ainda pode ser preenchida
por pequenos e breves momentos de beleza, num mundo empobrecido e
marcado pelo trabalho, pelo tédio da rotina ou simplesmente pela passagem do
tempo. Em Pai e Filha, o neutro remete não à indiferenciação, mas a sutis
gradações de uma pintura abstrata monocromática ou de uma natureza-morta.
Como nos lembra William Carlos Williams:
tanta coisa depende
de um
carrinho de mão
vermelho
esmaltado de água da
chuva
ao lado das galinhas
brancas
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Retomo Rimbaud. Morrer por uma ideia, ideologia, por alguém.
Certamente não. Nem mesmo pela delicadeza. Também nada é muito
suficiente para fazer viver. Mas contudo se vive. Ao se defrontar não com os
momentos e sentimentos excepcionais, a tarefa da delicadeza é a difícil e
diária reinvenção do cotidiano. O que fazer quando não vivemos grandes dores
nem grandes alegrias? Aí procuro a delicadeza, não sob o peso da rotina, mas
sob o signo da leveza. Leveza que como nos lembra Italo Calvino não se
confunde com superficialidade fútil nem com o fascínio incessante pelo jogo
das máscaras que seduziu tantos filósofos na esteira de Nietzsche. A leveza da
delicadeza não está no mergulho trágico no mundo das máscaras, das
superfícies sem profundidades. Ela está mais no se deixar levar com as ondas,
no se deixar dissolver na paisagem, encenando um mundo de materialidades
em que a figura humana desaparece, dilui, se rarefaz como nos últimos
momentos de O Eclipse de Antonioni. Nós saímos do centro sem que o mundo
sinta falta de nós.
Não parece ser difícil desaparecer. Tantas pessoas subitamente deixam
suas vidas. Dizem que vão ao supermercado e não mais voltam. Sem nada
explicar. Sem nenhum grande motivo. Desaparecer simplesmente para não ser
mais reconhecido, ser comum.
Ser comum, qualquer um, anônimo carrega em si uma singularidade
como nos apontou Giorgio Agamben a partir de Bartleby de Melville mas
acho melhor buscar o comum em Felicité de Um Coração Simples de Gustave
Flaubert e na sua reescritura em Prima Biela de Uma Vida em Segredo de
Autran Dourado. Me detenho brevemente nessa esquecida novela de Autran
Dourado em que a protagonista poderia quase ser confundida com o medíocre,
mas não com o burguês tão odiado pelas vanguardas dos anos de 1910 e
1920, nem "com o homem médio nem com o homem massificado" (GUIMARÃES,
2007: 139). O lugar de Prima Biela como o de Felicité não é o da moral
conservadora, nem da revolta, nem tampouco do mergulho no inconsciente, é
antes o da discrição, de um irmanamento ao mundo das coisas e dos espaços,
dos quais ela pouco se destaca; de um discreto cotidiano, "movimento pelo
qual o homem se mantém como que à revelia no anonimato humano. [Neste]
cotidiano não temos mais nome, temos pouca realidade pessoal e quase não
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temos uma figura" (BLANCHOT, 2007: 241). Se em Bartleby recusa, ainda
que suave, é mais pelo silêncio do que pelo enfrentamento. E se Bartleby pode
ser visto como uma "reserva de anarquia" (BLANCHOT, 2007: 242), talvez isso
explique seu discreto charme 68 que ele ainda pode encarnar hoje em dia. Mas
recusa e aceitação parecem ser palavras insuficientes para o que procuramos.
Para se entender Prima Biela que se afastar um pouco das energias
rebeldes, utópicas que incendiaram corações e mentes do Dada à
contracultura, dos ideários comunistas e anarquistas, das revoluções sexuais,
comportamentais dos beatniks, hippies, punks e dos ciberartivistas reunidos
em fóruns sociais globais, pela internet ou ocupando Wall Street.
Talvez mesmo retomando a ressaca dos anos de 1970 e sem aderir
ao conservadorismo do consumismo é que podemos talvez recuperar estas
vozes soterradas à sombra de Felicité e de Prima Biela, figuras mais da
invisibilidade (ou da opacidade?) e da discrição do que da recusa e do
confronto. Isso para, talvez, enfrentarmos não tanto o mundo das grandes
ideias e transformações, mas o dia a dia, o cotidiano, que bem pode ser o
espaço da opressão, da repetição, do mesmo, mas pode ser o espaço da
reinvenção, da conquista feita pouco a pouco.
A busca do comum vem da impossibilidade de vivemos a orgia perpétua,
na expressão de Mario Vargas Llosa, como bem descobriu outro personagem
de Flaubert, Madame Bovary; de vivermos o êxtase permanente e o confronto
com nós mesmos quando as máscaras da noite caem e aparece um outro
rosto, uma outra máscara com a qual temos que lidar, sem escapatória, mais
cedo ou mais tarde, nem que seja na solidão de nossos quartos.
Biela é trazida da fazenda após a morte do seu pai para a casa de
primos em uma pequena cidade. No início, ela não consegue habitar o lugar, o
espaço que lhe é destinado, a não ser para se sentir distante. Mas pouco a
pouco muda, já se sente outra quando é rodeada por seus pertences e começa
a compor uma rede de afetos. Se Marcel, o narrador de Em busca do tempo
perdido, parte pelo aristocrático caminho de Guermantes, Biela descobre algo
mais modesto na própria casa em que morava. “Até que descobriu o caminho
da cozinha. com a velha Joviana e Gomercindo, com a gente miúda, se
sentia mais à vontade, como se estivesse na fazenda do Fundão (GUIMARÃES,
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2007: 37). E ainda: "ela gostava mesmo era de gente humilde (...) mais aberta
com a gente da cozinha, a arraia miúda que vivia. Não dava mostra de ter
nenhum afeto para aqueles que prima Constança dizia que eram seus iguais"
(GUIMARÃES, 2007: 52). Gradual e sem muito alarde, ela se aproxima do mundo
dos empregados da casa ao invés de seus primos, das pessoas humildes da
cidade diferentes da classe de sua família, e ao cachorro sem dono, que
acolhe. Na cidade, gradualmente, começa a ser reconhecida, "tão prestativa,
tão simplesinha, tão alma boa" (GUIMARÃES, 2007: 60). Após o fracasso do
noivado, Biela não cultiva a dor (GUIMARÃES, 2007: 89). Mesmo o ódio dela não
era muito de durar, não tinha a alma do pai. "Ela ganhava até uma certa doçura
nos olhos, nos gestos, no jeito" (GUIMARÃES, 2007: 99). Esta doçura que é
menos comum em Flaubert, em Beckett e em vários dos filmes que estou
estudando demanda uma presença ausente (e é um desafio para atores que se
defrontam com esses papéis, como podemos ver na atuação limitada de
Sabrina Greve como Biela em Uma vida em segredo de Suzana Amaral.
Longe de ser reduzida a uma excluída da sociedade, Biela também não
adquire uma sensibilidade artística ou intelectual, mas certamente tem um
vínculo com o mundo das coisas e os espaços que pode atingir uma dimensão
de pertencimento. Mundo em que pessoas, objetos e animais parecem
coexistir em de igualdade, numa passividade que parece ser uma atitude de
permeabilidade, de dissolução no espaço, de não chamar a atenção.
É a partir da difícil possibilidade de compartilhar, de estar com que
podemos pensar não simplesmente vidas, existências despojadas,
despossuídas e isoladas, mas uma comunidade em que a sexualidade deixa
de ser confessada, discutida, problematizada, falada, e a experiência dos
sentidos se espraia em diferentes modos e objetos. Tudo sob a marca da
discrição tanto nas alegrias quanto nas tristezas e no silêncio que, longe de
serem apenas marcas de opressão, ao menos no caso de Biela, têm um traço
afirmador do mundo, de uma experiência particular sem mistificação nem
idealização paternalista. São personagens que resistem à interpretação, talvez
como nos lembra Deleuze sobre Bartleby, por não se constituírem enquanto
símbolos (DELEUZE, 1997: 80), nem alegorias fáceis.
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A vida de Felicité, como a de Biela, cabe numa novela, ambas são
narradas de forma contida, sem acentuar mesmo os momentos mais difíceis.
Os narradores também são econômicos diante dessas vidas modestas,
marcados por uma "neutralidade controlada" (RAITT, 1991: 12) e por um ideal
de impessoalidade (RAITT, 1991: 12) que encenam uma "existência marcada
pela monotonia, sem crises reais ou dramas, nas quais dificilmente uma
estória para ser desenvolvida (RAITT, 1991: 28). Sem "closes para evitar uma
excessiva dramatização" (RAITT, 1991: 31) nem diálogos (RAITT, 1991: 32),
emerge uma afetividade austera e contida em que os pequenos gestos de
expressão ganham mais força.
É sabido a partir de declarações do próprio Flaubert que a criação de
Um coração simples foi uma resposta a Georges Sand quando ela diz em uma
carta: " você produzirá desolação e eu, consolo" (cit. en RAITT, 1991: 13). E
ainda em outra carta quando ela diz: "não considere a verdadeira virtude como
um lugar comum em literatura" (cit. en RAITT, 1991: 13). Flaubert deseja e
constrói um personagem simpático e virtuoso, premiado pela felicidade mais
do que destruído pela vida. Sendo por isto que ele se voltou para uma pessoa
sem cultura, sem imaginação, sem inteligência real como personagem central:
demasiada lucidez faria com que visse sua posição de fora e teria arruinado a
“tranquilidade de sua alma, recompensa de sua virtude” (cit. en RAITT, 1991:
14).
Essa construção não faz de Felicité uma personagem marcada pela
ironia nem vista de uma forma paternalista e infantilizada. Esta talvez seja a
grande qualidade em falar do outro sem reduzi-lo nem endeusá-lo, nem
satirizá-lo nem tipificá-lo. Diferente do olhar marcado pela crueldade, trata-se
talvez de uma dramaturgia da compaixão tanto em relação ao autor com seus
personagens como na relação entre público, leitor e obra. Trata-se de
acompanhar, estar com, passar por, sem se identificar, ter empatia por nem se
distanciar, mas tentar ir até o fim em companhia de. "Uma dramaturgia do
comum, do homem comum, é uma dramaturgia da compaixão. Só a compaixão
(como sentimento distinto da piedade, da misericórdia etc.) salva o comum da
indiferença, que é a ameaça que mina o comum por dentro" (Mauricio
Lissovsky, comentário pessoal enviado por e-mail em 4/3/2010).
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Aprender a compaixão, a ser comum, a ser anônimo, a desaparecer.
Ela, delicadeza parece nos dizer. O desaparecimento, esta nossa última figura
da delicadeza, pode nos oferecer, se não um caminho, pelo menos uma pista
para reavaliar a invisibilidade. Se a invisibilidade comumente tem um sentido
negativo num primeiro momento de uma política de identidades, talvez agora
ela possa significar algo diferente. Ser invisível numa sociedade consumista
pode ser uma maneira de fazer uma diferença pela pausa e sutileza. Numa
sociedade em que tudo, todos devem ser visíveis a qualquer custo, incluindo
mais e mais diversos grupos minoritários, mesmo a transgressão e a diferença
são apenas estratégias de marketing. Por certo, invisibilidade não significa se
esconder, fugir da realidade, mas simplesmente uma forma de enfrentar o
poder corrosivo do simulacro, o excesso de imagens e signos, cada vez mais
desprovidos de sentido.
A desaparição seria, então, uma outra maneira de viver. A desaparição
está sempre em constante tensão com a visibilidade, nos seus vários sentidos,
seja político, cultural, comercial ou existencial. Como então desaparecer? Não
é só uma questão de saber como lidar com a imagem pública como no caso de
pop stars e políticos. É algo mais amplo. A invisibilidade tem menos a ver com
o fascínio romântico por outsiders do que por apontar para uma subjetividade-
paisagem formada pelos fluxos do mundo, sem, contudo, aderir rapidamente
às superteorizações dos sujeitos nômades e pós-humanos. É uma questão
de deixar o mundo exterior ser o interior, a superficialidade ser a profundidade.
Desaparecer para reaparecer. Aparecer para desaparecer. Uma brincadeira de
pique e esconde.
A busca por delicadeza é uma busca por fantasmas, por invisibilidade.
Clamar por uma nova invisibilidade não significa autorrepressão, voltar a um
momento anterior a uma política de identidades necessária e eficiente na
conquista de direitos, mas pensar para além, para o futuro. Trata-se de buscar
menos confronto e mais sutileza diante do crescente uso conservador das
políticas de representação por movimentos religiosos e étnicos
fundamentalistas, uma estratégia que privilegie e amplie o necessário diálogo
com outros sujeitos na esfera pública, onde é esperado um confronto, uma luta,
uma mudança de posição. Onde é esperado o grito, baixar a voz.
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[pp 161 - 171 / ISSN en trámite / REVISTAS ESPECIALIZADA!!169!
Desaparecer é o que vai perseguir a ficção de Caio Fernando Abreu,
nos seus últimos anos, à sombra da AIDS, até sua morte em 1996.
Sobrevivente dos anos de 1970, ele se reinventa. Ao invés da mitificação da
margem, celebração da diferença, armadilha da confissão, algo mais sutil e
delicado. A invisibilidade seria um sinal de modéstia, como o protagonista de
Onde andará Dulce Veiga? descobre. No início do romance, ele vive sua
invisibilidade social como mediocridade e fracasso. Quando ele consegue um
emprego num jornal de quinta categoria, sua primeira grande matéria foi a de
procurar por Dulce Veiga, cantora que desaparecera muito tempo atrás, nos
anos de 1970 talvez. Ela some quando iria se apresentar no show que a
consagraria como um dos grandes nomes da música popular brasileira. Ela
não aparece e nunca mais se teve notícia dela. Subitamente Dulce Veiga, que
tinha sido entrevistada pelo jornalista ainda jovem numa de suas primeiras
reportagens, começa a aparecer em vários lugares na cidade de São Paulo.
Estas aparições não o fizeram compreender melhor a si mesmo, o
passado, mas conquistar uma outra invisibilidade, um outro desaparecimento.
Quando finalmente ele, que sempre fora apenas o fã, o que falava de outros,
encontra Dulce Veiga numa pequena cidade no centro do Brasil, ele canta pela
primeira vez, encontra sua voz apenas para que possa desaparecer melhor,
sem mágoas nem ressentimento. Desaparecer para o protagonista que até o
fim do livro não tem um nome é encontrar-se diferentemente num outro tempo
e lugar.
Não se trata mais de fracasso nem de ser devorado pelo mundo da
velocidade e da fugacidade. Coisas que pareciam tão importantes ficam sem
sentido. Por ora, após tanto falar, talvez seja razoável procurar falar menos.
Aprender novamente coisas básicas como ouvir e prestar atenção antes de
falar. Não ter medo do nada e do vazio nem procurar tão desesperadamente
por uma grande causa (identidade). Talvez o outro e também nós mesmos
apareçamos, por estranho que possa parecer, pelo desaparecimento.
Desaparecer cada dia o melhor possível talvez seja um desafio ético
quando todos querem ser visíveis, presentes, intensos cada vez mais e a todo
momento para provarmos que existimos, para conquistarmos algo, alguém, um
lugar.
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Desaparecer é se tornar fantasma. Fantasmas não são apenas traumas,
podem ser apenas memórias persistentes que assombram a própria condição
precária do presente, a fragilidade do real e da imagem. Também são na sua
discrição - que não é confundida como recusa do mundo, seja pela solidão ou
pela morte - uma encarnação do homem comum na sua difícil busca de
singularidade e sobrevivência em meio ao mundo de hoje, na sua fragilidade
subjetiva e afetiva. "O eu nunca foi o sujeito da experiência, o eu jamais o
consegue, nem o indivíduo que sou, essa partícula de pó" (BLANCHOT, 2007:
193)
Também começo a me perder, a desaparecer em meio a tantas
imagens. Talvez tudo que esteja tentando falar nada tenha de delicado. Nesse
esforço de falar tanto sobre algo que não demanda nenhum espaço, nenhuma
voz, nenhum lugar identificado, institucional.
O encontro pela delicadeza, daqueles demasiados frágeis para viver e
para morrer. Ramos levados pela correnteza. Espuma nas ondas que batem na
praia. O que sentimos por todo lado mas não vemos. Vento nas árvores
primaveris. Não toquem não que se perdeu. É isto? A delicadeza nos
escapou?
Diante dos grandes sistemas, o que pode a delicadeza fazer a não ser
deslizar (no gesto barthesiano traduzido talvez) pelo ensaio que aqui tento,
incapaz de grandes conceitos nem de grandes quadros. Nem artista, nem
filósofo, corro os riscos da incompreensão mas talvez possa tocar, por breve,
por pouco que seja. A busca talvez tenha sido vã. E não perdi o meu tempo
e pela mais completa indelicadeza tenha feito perder o tempo dos que
gentilmente se dispuseram a me ouvir. Mas talvez tenhamos chegado nem
diante do mar nem de uma montanha, nesta curta caminhada. Chegamos a
um jardim como o vislumbrado pelo protagonista de O Mar da Fertilidade de
Yukio Mishima: “Era um jardim luminoso, tranquilo, sem características
marcantes. Como um rosário que se esfrega entre as mãos, o canto estrídulo
das cigarras continuava predominando. Não havia nenhum outro som. O jardim
estava vazio. Honda refletiu que chegara a um lugar que não tinha nenhuma
lembrança, não tinha nada. O sol do meio-dia flutuava sobre o jardim imóvel”
(MISHIMA, 1988: 211).
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Referências
BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita 2: A Experiência Limite. São Paulo,
Escuta, 2007.
BARTHES, Roland. O Neutro. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
DELEUZE, Gilles. “Bartleby, ou a fórmula” in Crítica e Clínica. São Paulo, 34,
1997.
DOURADO, Autran. Uma Vida em Segredo. Rio de Janeiro, Ediouro, s.d.
GUIMARAES, César. “O Devir Todo Mundo do Documentário” in GUIMARÃES,
César et al. (orgs.). O Comum e a Experiência da Linguagem. Belo
Horizonte, Ed. UFMG, 2007.
MISHIMA, Yukio. A Queda do Anjo. São Paulo: Brasilense, 1988.
RAITT, Alan William. Trois Contes. Londres, Grant & Cutler, 1991
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