Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 63 ISSN 2422-5932
POÉTICAS AMERÍNDIAS: PERS-
PECTIVISMO E TRANSCRIAÇÃO
CANIBAL
NATIVE AMERICAN POETICS:
PERSPECTIVISM AND CANNIBAL TRANSCREATION
Caio Ricardo Bona Moreira
Universidade Federal de Santa Catarina
Doutor em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina); Mestre em
Ciências da Linguagem pela UNISUL (Universidade do Sul de Santa Catarina); Professor de
Literatura Brasileira e Teoria Literária pela UNESPAR (Universidade Estadual do Paraná),
campus de União da Vitória (PR), Brasil.
Contacto: caiorbmoreira@hotmail.com
Textualidades indígenas en el espacio lati-
noamericano: lenguas, prácticas, documentalidad
DOSSIER
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 64 ISSN 2422-5932
Fecha de envío: 22/04/2019 Fecha de aceptación: 04/07/2019
Literatura indígena
Perspectivismo
Etnopoesia
Este texto reflete sobre as manifestações literárias oriundas do universo indígena brasileiro. Intenta-se um
mergulho naquilo que poderíamos chamar de etnopoesia, em cujo universo mito e poesia se correspondem.
Trata-se não de problematizar a velha historiografia da Literatura Brasileira que desconsidera - na dis-
cussão sobre as suas origens -, as produções literárias pré-coloniais de matriz oral que sobreviveram à coloni-
zação, mas também de devolver potência à literatura entendida como pensamento selvagem. Por meio de uma
concepção perspectivista, segundo a qual não faz sentido pensar na "natureza" e na "cultura" como elementos
distintos, buscamos responder às seguintes perguntas: o que podem nos ensinar as poéticas ameríndias? O que
está em jogo na ética de sua heterogeneidade? Como podemos, ao invés de dar voz a esse outro, nos permitir
ouvi-lo? E que possibilidades de experiências interculturais podem brotar de uma poética da alteridade -
nascida do contato com as manifestações literárias indígenas. Incluem-se nesse caso as produções literárias
contemporâneas inspiradas na poética ameríndia, como é o caso das traduções/transcriações de Josely Vianna
Baptista dos cantos que integram o Ayvu rapyta, dos Mbyá- Guarani.
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE
Multimodal archives
Indigenous languages
Graphocentrism
Literacy
Indigenous literature
This texts reflects about the literary manifestations from the Brazilian indigenous universe. It is intended a
diving process in what we call ethnopoetry, where the myth universe and poetry are related. It’s is not just out
to problematize the old historiography of Brazilian Literature that disregard- at the discussion about the
origins the pre-colonial literary production of oral matrix that survived to the colonization, but also to
return the potency to the Literature understood as wild thinking. Through a perspectivist conception, where it
does not make sense thinking about “nature” and “culture” as distinct elements, it is desired to answer the
following questions: what can be taught by the Brazilian indigenous poetry? What is in the game in the ethics
of its heterogeneity? How can we, instead of giving voice to the other one, permit ourservelves to listen to it?
And what possibilities of intercultural experiences may flush of a poetry of otherness born in the contact
with indian literary manifestations. It is added in this case the contemporary literary production, inspired in
the Brazilian indigenous poetry, as the case of translation/transcriptions of Josely Vianna Baptista of songs
which make part of Ayvu rapyta from Mbyá-Guarani.
ABSTRACT
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 65 ISSN 2422-5932
Introducción
Os indígenas todos deveríamos saber descobriram a América antes
dos europeus. Foi na época em que o tapete verde de nossas matas
estendia-se da costa para o interior, do norte para o sul, do leste para
o oeste. No tempo em que os tupinambás já eram inimigos dos te-
miminós vulgo maracajás, e em que outras tribos guerreavam entre
si. E mesmo bem antes disso. Há mais de 12.000 anos surgira no
Continente a tradição tupi, entre a Amazônia e os Andes. No perío-
do das grandes migrações, esse grande grupo se espalhou pela Amé-
rica do Sul, desdobrando-se em várias etnias.
1
O auge dessa expan-
são, no Brasil, se deu entre 3.000 e 2.000 anos atrás pelo Sul e Sudes-
te, e depois se intensificou no litoral, até chegar ao Nordeste. Há
mais de 2.000 anos o Caminho de Peabiru ligara o oceano Atlântico
ao Pacífico, promovendo uma conexão entre povos diversos. Depois
de observar que quase a totalidade da população brasileira possui
marca genética que indica linhagem indígena, Alberto Mussa, em Meu
destino é ser onça, afirmou que "há 15 mil anos somos brasileiros; e não
sabemos nada do Brasil" (2009: 22). Para boa parte dos manuais de
história da Literatura Brasileira, antes da chegada de Cabral não ha-
via pensamento poético nos trópicos. Engano.
Mais do que buscar uma outra genealogia para a Literatura Bra-
sileira tradicionalmente situada na descoberta, no século XVI, ou
com o barroco, no século XVII, ou ainda com a publicação das Obras
Poéticas, de Cláudio Manuel da Costa, no século XVIII intentamos
aqui traçar um caminho mais oblíquo e que nos leva a paradas mais
distantes. Ou ainda (re)traçar um caminho já feito até nós, mas la-
mentavelmente esmaecido, quase apagado, pela ação do tempo do
tempo que transforma quase tudo em nada e pela ação do poder e
da ambição que silencia o que não lhe convém. Estamos interessa-
dos, portanto, em ruínas. Buscamos aqui reencontrar, por meio de
ecos, de estratificações, e mesmo de cantos que ainda repercutem pe-
lo ar, gestos poéticos de uma civilização anterior à branca nos trópi-
1
Kaká Werá Jecupé, que se proclama índio tapuia (tendo sido adotado por uma comunidade Guarani) e que é
escritor e professor, informa em seu livro O Trovão e o Vento, que aproximadamente 3.500 anos atrás, a tra-
dição tupi localizava-se entre as montanhas andinas, confrontando-se com os quetchuas, aymaras, incas. Des-
cendo em direção a florestas atlânticas, encontravam com os mapuches, os kaigangs, os xoclengs: “Quando se
deslocavam pelo litoral, desmembraram-se em guaicurus, minuanos, carijós, guaianás e outras tribos” (Jecu-
pé, 2016: 30).
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 66 ISSN 2422-5932
cos brasileiros. Naturalmente, mui variadas e ricas são as manifesta-
ções que lhe dão existência. Boa parte delas, aliás, já extintas, assim
como foram as pessoas, as tribos e, consequentemente, as línguas
por elas cultivadas. Daquilo que nos resta salvar, que nos seja dado,
então, a ler.
O sequestro das poéticas ameríndias que poderíamos chamar
também de poéticas pré-coloniais ou extraocidentais, nos estudos
historiográficos e críticos da literatura brasileira, silencia textualida-
des de grande riqueza e qualidade estéticas. Um sequestro que, como
consequência ao silenciamento de um povo e de uma cultura, se per-
petua ao longo da história, obliterando até nos dias atuais a literatura
produzida por índios, seja aquela que representa direta ou indireta-
mente a sua cultura, aquela produzida por escritores interessados pe-
las suas causas ou aquela gerada pelo próprio povo ameríndio. Nota-
se o quanto o tema se desdobra até a contemporaneidade. Antonio
Risério (1993), em um belo livro dedicado às poéticas indígenas e
africanas, Texto & Tribos, observou que tais poéticas não puderam in-
fluir em nossa poesia literária pelo simples fato de ainda hoje perma-
necerem desconhecidas. Para ele, a marginalização dessas manifesta-
ções é um reflexo, no ambiente letrado, do estatuto subordinado
dessas culturas no espaço mental brasileiro, reflexo, por sua vez, do
lugar ocupado por essa gente, e pela maioria dos seus descendentes
mestiços, na estrutura da sociedade nacional (1993: 23).
Não nos interessa necessariamente reivindicar um lugar para a
literatura produzida por índios no contexto de um cânone literário
ou de uma possível origem. O que buscamos é acima de tudo devol-
ver potência para a literatura entendida como pensamento selvagem.
2
Nesse aspecto, não faz sentido julgar as textualidades ameríndias, ex-
traocidentais por excelência, como não pertencentes ao universo lite-
rário ou poético conceitos essencialmente ocidentais, mas de per-
ceber que o que chamamos de literatura e poesia pode ser encontra-
do em todas as culturas, inclusive nas ancestrais que nos interessam
2
A palavra selvagem não está ligada aqui especificamente aos sentidos que lhe foram atribuídos ao longo da
história, seja aludindo a algo que não é civilizado assim como a palavra bárbaro lhe seria sinônima, nem na
acepção de pureza e de bondade sustentada pelo pensamento rousseauniano. Selvagem aqui é entendido como
um elemento telúrico capaz de gerar um pensamento próprio e resistente diante da domesticação imposta pelo
colonizador. Não no sentido de “puro”, mas no de “autêntico”. O adjetivo está mais próximo do significado
que lhe Roger Bastide, em O Sagrado Selvagem, agregando-se agora, no entanto, ao elemento negro o
indígena. Inspirado por André Gide, Bastide, em sua pedagogia da selvageria, lembra do cansaço de nossa
civilização mecânica, artificial, racional, clamando por uma nova invasão de bárbaros, que destruísse o nosso
mundo e “lhe oferecesse uma chance de alteridade” (2006: 251). Nota-se que o sentido de selvagem, para
Bastide, passa não apenas pela ligação com o telúrico em sociedades tradicionais, pautadas pelo sagrado não-
domesticado, mas também por aquilo que se opõe à sociedade europeia racionalista, mecânica e industrial.
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 67 ISSN 2422-5932
aqui. Devolver a literariedade,
3
que lhe é sua por direito, é urgente
em tempos ainda de genocídio cultural, social e humano. Salvar as
palavras indígenas é uma forma de salvar a sua alma não como ten-
taram religiosamente os jesuítas, mas apenas com espírito poético,
já que para boa parte dos índios, em especial para os guaranis, suas
palavras são sua própria alma.
Literatura é também coisa de índio, xamã é poeta
Em um mundo no qual cada vez mais o modelo cultural dominante
dirige nosso olhar para aquilo que tal sistema deseja que seja visto,
no qual aquilo que deve ser olhado é praticamente pautado por uma
espécie de imposição, aprender a ver o outro, bem como a ouvi-lo, é
tarefa que exige disposição, lucidez e coragem. Ouvir a voz que se
depreende das poéticas ameríndias é uma forma não só de inscre-
vermos outros sentidos para uma literatura ainda pouco lida, bem
como, e principalmente, devolvermos potência para a literatura en-
tendida como pensamento selvagem. Se o mito que se depreende de
tal poética se transformou em literatura, cabe-nos dar atenção às suas
palavras e à força de sua sobrevivência e resistência. Poderíamos
pensar na produção poética dos índios como uma espécie de etnopo-
esia.
4
Não se pode deixar de pensar na etnopoesia como o espaço no
qual se processa uma certa indissolubilidade entre mito e poesia, lu-
gar também pautado por um perspectivismo que nos convida a redis-
cutir e a reinventar as relações entre natureza e cultura. No perspec-
3
O conceito nos chega dos formalistas russos, para quem a literariedade é o que faz do poema um poema.
Para eles, o caráter literário se estabelecia a partir de traços diferenciais entre um discurso e outro. E o que
conferia literariedade a um texto era o desvio da norma, os usos que se fazia de um texto, bem como a capaci-
dade de um poema tornar estranho um conteúdo, ou seja, produzir estranhamento. No caso da poesia, isso vai
desde o uso de metáforas até a forma diferente de se escrever e de se ler um texto. Antonio Risério apontou
para a necessidade de um resgate verdadeiramente poético das textualidades indígenas, em oposição ao mero
registro etnográfico de seus textos. Isso significa traduzir –ou melhor, “transcriar” tais poéticas com olhar
também poético, numa atividade capaz de recuperar suas falas ancestrais. Risério reclama, insistentemente, da
escassez de “recriações”, de textos afro-ameríndios: “Falo de recriações poéticas (poesia com poesia se paga),
não de versões etnográficas “conteudistas”, onde também estamos mal servidos” (1990: 23). Recriação poéti-
ca é o que Josely Vianna Baptista consegue fazer em Roça Barroca, como veremos.
4
Como sugere Luis Dolhnikoff, "etnopoesia é mito em linguagem poética: portanto, mito antes de poesia"
(em Baptista, 2011). E acrescento aqui, poesia depois de mito, ou ainda, perspectivamente falando, as duas
coisas juntas. Interessa-nos, aqui, mais do que analisar os textos propriamente indígenas, refletir sobre experi-
ências interculturais que se estabelecem a partir do diálogo fecundo entre a literatura e a poética ameríndia.
Antonio Risério, por sua vez, criticando o conceito de etnopoesia, sugere que não devemos incorrer no erro de
sobrepor um “rótulo positivo genérico (1993: 22) a essa massa textual. Janice Thiél, seguindo o mesmo
olhar, escreve que todas as poéticas podem ser consideradas etnopoéticas, porque “são configuradas de acordo
com normas próprias a cada cultura produtora de textos” (2012: 36).
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 68 ISSN 2422-5932
tivismo ameríndio, comum a muitos povos do continente, reside uma
concepção segundo a qual "o mundo é habitado por diferentes espé-
cies de sujeitos ou pessoas, humanas e não humanas, que o aprendem
segundo pontos de vista distintos" (Viveiros de Castro, 2002: 347).
Nas mitologias que pervivem em textos poéticos indígenas, cosmo-
gônicos ou não, percebe-se a presença de um perspectivismo que nos
convida a conhecer a ontologia ameríndia, refletindo sobre uma ética
da heterogeneidade e suas experiências interculturais que nos permi-
tem enxergar "o outro" que emerge dessa alteridade. Depois de tra-
var contato com sua poética, como passamos a ver esse outro que a
história silenciou? Como nos vê aquele que olhamos? O outro não
seria nós mesmos do ponto de vista do outro?
Eduardo Viveiros de Castro, ao tratar do perspectivismo na cul-
tura Yawalapíti exemplifica o fato com a seguinte expressão: "Gente
é macaco de onça". É assim que a onça nos vê. A onça, humana, nos
vê como bichos, ou melhor, alimento. E como nós a vemos, toman-
do consciência da existência do perspectivismo? Trata-se apenas de
um exemplo que nos ajuda a entender a nossa relação com o outro,
que até então considerávamos como estranho por ser desconhecido.
Na poética ameríndia é comum encontrarmos aquele traço fun-
damental do perspectivismo de que nos fala Eduardo Viveiros de
Castro, ou seja, a atribuição de humanidade a aquilo que a cultura
ocidental não considera como humano. Inverte-se a polaridade tradi-
cional que vê o homem como bicho. São os animais que revestem-se
de humanidade. Reiteremos que Natureza e Cultura deixam de ser in-
terpretados como elementos opostos.
Uma das características do perspectivismo ameríndio se encon-
tra no xamanismo, que é tratado por Viveiros de Castro como uma
"arte política", já que nele há um intercâmbio ou o encontro de pers-
pectivas. Lembremos que o xamã tem a habilidade de cruzar delibe-
radamente as barreiras corporais e adotar a perspectiva de "subjetivi-
dades aloespecíficas" (2002: 358). Pensemos aqui que o xamã, assim
como o poeta, teria a possibilidade de comungar com uma experiên-
cia intersubjetiva radical. E a poesia nos permitiria conhecer esse ou-
tro de uma forma radicalmente fecunda, já que por meio dessa empa-
tia nos apresentaria também o "outro do outro", que somos nós
mesmos. Portanto, mergulhar na poética ameríndia é uma forma de
construir um olhar sobre o outro e sobre nós mesmos. Segundo a
pesquisadora Ana Carolina Cernicchiaro:
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 69 ISSN 2422-5932
Esta abertura da arte constitui uma ética da heterogeneidade que
deixa irromper o olhar do outro e transforma a imagem em uma poé-
tica de alteridade. A ética que se revela neste processo se apresenta
como práxis de afetação, de contato, de contágio. Trata-se de uma
ética da alteridade e da heterogeneidade que transforma a arte em ir-
rupção do olhar do outro. Isso porque a questão da ética pressupõe
um reconhecimento do outro anterior à dicotomia eu-outro, mesmi-
dade-alteridade. Neste sentido, ela é inseparável da política, por-
quanto a questão do político é a que nos vem do outro, a que é sig-
nificada a partir do lugar do outro. Mas também da estética, já que
este olhar do outro transforma a própria linguagem da arte, realiza
um devir-minoritário da língua pela arte, revela uma presença irre-
presentável, que coloca em jogo e desnaturaliza as formas fixas, ho-
mogêneas e excludentes da cultura dominante (Cernicchiaro, 2015:
257).
Não estamos interessados apenas em analisar textos poéticos produ-
zidos por índios, referentes às suas culturas, línguas e comunidades.
Trata-se de discutir também a pervivência da poética ameríndia em
outras experiências literárias que intentam, a partir de um certo diá-
logo com o universo indígena principalmente no que se refere às
suas línguas e traduções, devolver potência à literatura entendida
como aquilo que chamamos de pensamento selvagem.
5
A política que
se depreende dessa perspectiva talvez seja o ponto que mais nos
chama a atenção. Refiro-me, por exemplo, às transcriações
6
poéticas
operadas por Josely Vianna Baptista, em Roça Barroca, a partir dos
mitos cosmogônicos dos Mbyá-Guarani, bem como ao trabalho poé-
tico de Wilson Bueno misturando o guarani, o espanhol e o portu-
guês, ao de Douglas Diegues, no seu portunhol selvagem, bem como
à releitura dos mitos cosmogônicos tupinambás, realizados por Al-
berto Mussa, em Meu destino é ser Onça.
7
No caso das transcriações de
5
Pensamos na poesia como linguagem em estado selvagem, lugar no qual todas as interdições entram em
suspensão e o digo linguístico é livre para qualquer ação. Se a poesia é esse espaço e tempo nos quais a
liberdade reina, é por meio dela que um xamã-poeta-índio consegue operar os seus milagres.
6
O conceito foi cunhado pelo poeta e tradutor Haroldo de Campos, quando ele publicou suas primeiras tradu-
ções de seis cantos do Paraíso de Dante. A expressão foi criada para distinguir uma concepção tradicional de
tradução da concepção de fidelidade semântica que um texto transcriado em outra língua pode ter em relação
ao original. Para Haroldo, a ideia de transcriar estabelece um diálogo não apenas crítico, mas também poético
com o texto traduzido. Trata-se, afinal, “de um modo de traduzir que se preocupa eminentemente com a re-
constituição da informação estética do original em português, não lhe sendo, portanto, pertinente o simples
escopo didático de servir de auxiliar à leitura desse original” (1976: 7). Nesse processo, não é o conteúdo
que é transcriado, mas a sua forma também, ou seja a poesia do poema, e não apenas o poema da poesia.
7
Outras referências poderiam ser citadas, como a tradução do “Canto da Castanheira”, dos Araweté, traduzi-
do e analisado por Eduardo Viveiros de Castro (2017) e re-traduzido, poeticamente, por Antonio Risério
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 70 ISSN 2422-5932
Josely sobre as quais nos deteremos neste texto, elas poderiam ser
entendidas como uma poética canibal, ou mesmo xamânica, na qual
os contatos, ou contágios, de uma língua com outra, antropofagica-
mente, apresentam-se como uma política de intercâmbio, reconheci-
mento, assimilação e resistência.
8
A questão da identidade é importante quando tratamos de uma
transcriação. Quando um poema cosmogônico é transcriado para o
nosso idioma, quem é seu autor? A tradicional ideia de autoria, oci-
dental por excelência, e assinatura entra em crise. Canibal é também
aquele que engole a língua do outro, contaminando-se e contagiando-
se com seu idioma, fazendo do outro um ser íntimo. A questão do
outro, aqui, é fundamental. Estar disposto a ouvi-lo, e não meramen-
te a dar a ele voz, significa criarmos uma reconciliação. O indígena
ainda não conseguiu ser ouvido, ao contrário do negro, cujas ações
afirmativas têm propiciado condições para uma revisão de sua histó-
ria, bem como para uma projeção de seu futuro.
Sobre a transcriação de uma poética ameríndia vale lembrar do
texto caxinauá sobre o mito da origem da lua que foi recriado pelo
poeta português Herberto Helder, integrando o livro Ouolof (1997),
9
no qual a tradução é pensada como ato de criação. O poema com
ares de prosa reconstitui o mito a partir da ideia de que a cabeça de
um dos personagens degolados sobe ao céu e se transforma na lua.
Imagem muito semelhante a que aparece em um dos capítulos do
Macunaíma, de Mário de Andrade, que provavelmente recolheu o epi-
(1993); as performances poéticas dos Suiá estudados por Anthony Seeger em Por que cantam os kisêdjê
(2015); os cantos da mitologia Marubo, traduzidos por Pedro de Niemeyer Cesarino em Quando a terra dei-
xou de falar. (2013).
8
Álvaro Faleiros, em Traduções Canibais (2019), desenvolve o que poderia ser classificado como uma “poé-
tica xamânica do traduzir”, pensando na figura do xamã como uma espécie de tradutor. Como o xamã seria
aquele que tem o papel de traduzir mundos e acessar “diferentes perspectivas”, sua atividade coincidiria com
a da tradutor de literatura que, pautado por uma poética multiposicional, teria o poder de traduzir de forma
mais inventiva que uma tradução tradicional. Essa poética da tradução, inspirada no universo indígena mas
que de certa forma dialoga com a lógica da transcriação, de Haroldo de Campos, e com o universo antropofá-
gico de Oswald de Andrade, permite ao pesquisador não apenas re-traduzir poemas indígenas como o “Can-
to da Castanheira”, dos Araweté (traduzido inicialmente por Eduardo Viveiros de Castro e depois por Antonio
Risério), mas também refletir sobre as traduções criativas que Ana Cristina César, bem como Gabriela Llan-
sol, realizaram de Charles Baudelaire.
9
No livro, o poeta traduz para o português, além do texto “A Criação da Lua”, dos Caxinauá, textos dos
Maias, de Zbigniew Herbert, de Emilio Villa, Jean Cocteau, Marina Tsvetaieva e Malcom Lowry. No caso do
texto caxinauá, o poeta partiu de uma versão francesa de P. L. Duchartre que por sua vez indicava o texto
original ter sido recolhido por João Capistrano de Abreu. Depois, Helder encontrou e utilizou como fonte o
livro -txa hu-ni-ku-i, A língua dos Caxinauás.
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 71 ISSN 2422-5932
sódio da poética caxinauá.
10
Segue o fragmento inicial do poema que
integra a antologia de Helder:
Do caxinauá seu nome seu feiticeiro é.
Caxinauás muito pelejaram para suas gentes ajuntaram,
Aqueles com pelejam.
Da vespa as gentes, muito corajosas muito,
Ali do sol do rio à beira,
Da vespa as gentes moram. Caxinauás de capivara rio
Com moram, os
Caxinauás do sol do rio ciosos
São
Os binanauás noite dentro dormem todos, deitados
Estavam, os caxinauás
Escuro dentro cacete com espancaram-nos,
Acabaram. Um só, sono com
Acordou, o terçado tirou, de feiticeiro nauá,
Iobonauá,
A cabeça degolou. Seu corpo caiu, está deitado,
A cabeça rolando, rolando vem
Por todo o caminho.
Muitos de corpos inteiros vêm, Iobonauá ele só,
Decapitaram,
Sua cabeça só rolando vem por todo o caminho.
Suas gentes ele com penalizadas chorando vem por todo
o caminho
(Helder, 1997: 47-48).
Nota-se um certo estranhamento na composição do texto que, por
vezes, faz lembrar a estrutura gramatical da oralidade indígena (ideo-
grâmica). Há uma transgressão proposital à norma culta da língua
portuguesa com a finalidade de uma ação poética. Para o poe-
ta/tradutor, a fala proferida pelos índios Caxinauá suscita questões
melindrosas, matriciais, de como ritmá-la em português sem afectar o
movimento da linguagem, e tudo o que implica a linguagem em mo-
10
Cavalcanti Proença, ao analisar a morte de Ci, no Macunaíma, observa que ela vai para o céu, “subindo por
um fio ou cipó, como na lenda da Tapera da Lua, de Afonso Arinos, na da Cabeça Decepada dos caxinauás
(Capistrano de Abreu), como irá mais tarde o próprio Macunaíma” (1978: 141). O que demonstra o conheci-
mento da lenda por Mário de Andrade. Sobre a questão da cabeça decepada, no episódio da Boiúna Luna, do
mesmo livro, Cavalcanti Proença não cita os caxinauás, mas observa que os motivos que compõe a narrativa
são “dos mais frequentes em nosso folclore” (144). Ele observa que Capei é a lua na mitologia dos taulipan-
gue.
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 72 ISSN 2422-5932
vimento (Helder, 1997: 43). Para adiante, dizer: Essa fala, quere-
mos fazê-la nossa. Uma alegoria antropofágica, diga-se de passa-
gem. Sob esse olhar, a dicção mítica, mágica e lírica da poética indí-
gena transgride em todas as frentes a norma da palavra portuguesa.
No entanto, esse mesmo transtorno faz-se ele mesmo e imediata-
mente substância e acção poéticas (Helder, 1997: 44). O que fica
sugerido, então, é que a subversão à norma da língua, a confusão lin-
guística oriunda do encontro tortuoso entre as duas línguas que
advém da impossibilidade de uma tradução plena do original -, bem
como a liberdade criadora da transcriação, permitem a geração de
uma força que anima a nossa língua, que devolve vida ao mito ao
passo que acontece a morte do original -, bem como que faz perviver
o original caxinauá na língua traduzida:
Do descentramento de estrutura entre as duas línguas captado com
legitimidade poética advém por si só uma força expressiva instan-
tânea em português, um português desarrumado, errado, libertado,
regenerado, recriado. A fala anima-se com uma energia material jubi-
lante. É novíssima (Helder, 1997: 44).
A tradução criativa permite que a fala do outro seja apropriada por
outro idioma e não apenas traduzida. O que implica uma prática fa-
vorável à alteridade, bem como à assimilação da perspectiva do ou-
tro, ou seja, não apenas do que o outro vê, mas principalmente de
seu olhar. Nesse sentido a tradução canibal, a transcriação, produz
uma política etnográfica do olhar.
Outro caso de transcriação de uma poética ameríndia, ou me-
lhor de uma (re)criação propriamente dita, se encontra no livro Meu
destino é ser onça (2009) de Alberto Mussa. O escritor recriou o mito
tupinambá sobre a origem do universo, que aparece registrado inici-
almente pelo frade André Thevet, que no século XVI conviveu com
os Tupinambás. Esse texto é a fonte primária do mito e, segundo
Mussa, uma autêntica epopeia mítica, como a Teogonia, o Gênesis, o
Popol Vuh, o Rig Veda. O autor nos conta que sentiu um impulso ir-
resistível de incorporar essa epopeia à nossa cultura literária, mesmo
o texto em tupi não tendo existido, porque o frade registrou seus
episódios por meio de sua representação oral. Para isso, era insufici-
ente traduzir a prosa confusa de Thevet e recompor a ordem interna
dos episódios: "faltava essencialmente devolver à narrativa sua litera-
riedade" (Mussa, 2009: 26). Poesia com poesia se paga. Isso porque o
relato do frade não possuía unidade narrativa. Porque quis fazer literatura
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 73 ISSN 2422-5932
e não apenas registro etnográfico, Mussa não se limitou a traduzir e
anotar a versão francesa do frade, mas produzir um texto novo, em
português, que correspondesse a um possível original tupi, no nível
estritamente teórico de seu encadeamento lógico: "Assim, para suprir
as deficiências que os dados internos não sanavam, utilizei outras
fontes primárias, produzidas essencialmente por missionários que
conviveram com os tupinambá e referiram mitos ou trechos de mi-
tos" (Mussa, 2009: 27). Trata-se, como vemos, de um típico caso de
antropofagia literária. Mussa é canibal ao escrever sobre a cosmogra-
fia tupinambá.
Segundo Janice Thiél, a leitura de obras da literatura indígena
"problematiza conceitos, desconstrói estereótipos, promove a refle-
xão sobre a presença dos índios na história e sobre a forma como sua
palavra e tradição narrativa poética são apresentadas em sua especifi-
cidade" (Thiél, 2012: 12). Nesse sentido, ler textos indígenas exige
abertura para outras tradições literárias, "construídas em multimoda-
lidades discursivas que solicitam do leitor percepção dos elementos
provenientes de visões complexas de mundo e da arte de narrar his-
tórias" (Thiél, 2012: 13). E esse processo todo se deu via tradição
oral, que permitiu que as narrativas indígenas pudessem "salvar" a
cultura, logo a vida, de seu povo:
O colonizador silenciou ou ignorou a voz indígena de tantos grupos
por muitos séculos, mas a arte narrativa indígena manteve a sua ex-
pressão nas Américas.
Essa expressão dá-se primeiro pela tradição oral, desde antes do as-
sim chamado descobrimento; após o contato com culturas europeias,
as narrativas provenientes da oralidade passam a ser escritas para as-
segurar sua memória e preservação.
As construções discursivas indígenas, embora tenham sido produzi-
das paralelamente às ocidentais, não encontraram a mesma visibili-
dade ou valorização dadas às criações classificadas como literárias de
acordo com padrões estéticos europeus (Thiél, 2012: 32).
Do nosso ponto de vista, em relação à cultura ameríndia, pensamos a
linguagem, bem como suas narrativas sempre como poéticas, mesmo
não sendo consideradas assim pelo olhar tradicional de um ocidental.
Não seria fortuito lembrar daquilo que Douglas Diegues escreveu em
sua língua mestiça: "(...) us Mbyá-Guarani ainda non conhecem la
linguagem poética porque ellos nunca conheceram otra linguagem
que non fosse la linguagem poética" (2006: 04). Isso porque a ori-
gem, a essência, a alma de um Mbyá-Guarani, estão pautadas pela pa-
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 74 ISSN 2422-5932
lavra que, em sua cultura, é entendida como Dom. Segundo Barto-
lomeu Melià:
A palavra é efetivamente para o Mbyá o objeto e o sujeito de sua ar-
te, seu conteúdo, sua forma. O definitivo de sua essência, de seu
modo de ser, é a palavra, e toda a sua vida se estrutura por ser fun-
damento e suporte de palavras verdadeiras. Desde a criação do mun-
do e do homem, que é vista como criação da palavra, até a morte de
cada pessoa, que é valorizada como grau maior ou menor de palavra
realizada, o Mbyá só se entende a si mesmo em função da palavra
(en Baptista, 2011: 09).
Aliás, a poética dos Mbyá-Guarani é rica e motiva este texto. Os mi-
tos cosmogônicos registrados nos cantos de Ayvu rapyta são uma das
manifestações mais importantes da mitopoética ameríndia (Baptis-
ta, 2011; 09). Vejamos com mais atenção este patrimônio poético
ameríndio.
Roça barroca, trasncriando cantos cosmogônicos dos mbyá-
guarani
Josely Vianna Baptista observa que o guarani é uma língua aglutinan-
te, não-flexionada, caracterizada pela união dos elementos constitu-
tivos dos vocábulos (2011: 10). Trata-se de uma forma estruturada
em constelações rítmicas e semânticas: Essa configuração constela-
da, em que a língua opera por um sistema de justaposição e síntese, e
sua arquitetura imagética e rítmico-sonora conferem ao guarani uma
alta potencialidade poética (10). Essa dimensão criativa do idioma
permite que seus textos, principalmente os mitos cosmogônicos, es-
tejam carregados de palavras-montagem, assonâncias, paronomásias,
metáforas e onomatopeias. Tais elementos materializam o que o pró-
prio mito sugere, ao apontar, desde o início dos tempos, para um
ruído portador da sabedoria da natureza, um som do cosmos se en-
gendrando por meio da 'linguagem fundadora' (10).
Os textos traduzidos por Josely Vianna Baptista integram os
Ayvu rapyta, cantos cosmogônicos da mitopoética ameríndia, que fo-
ram coletados inicialmente por León Cadogan, entre os Mb-
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 75 ISSN 2422-5932
guarani, no Paraguai nos anos 40.
11
Os índios haviam mantido esses
poemas em segredo até então. Cadogan, depois de salvar um índio
guarani de uma condenação injusta, ganhou a autorização dos mbyá
para traduzir e publicá-los.
Para compreendermos a dimensão sagrada que envolve não
apenas esse texto, mas outros nos quais o sagrado tem um lugar pre-
dominante, vale a pena comentar sobre a dimensão sagrada que a pa-
lavra tem para os índios guaranis.
Segundo Douglas Diegues, a essência e a medula da cultura
Mbyá-Guarani é a palavra. A arte da palavra, ou musical, ou ritual,
desses índios acontece fora dos limites da arte e se mistura com a
própria vida e com uma religião própria da palavra: Não há distin-
ção entre arte e vida, orar e cantar, dançar e orar e cantar no mundo
Mbyá, assim como não há distinção entre palavra e alma. E viver, é
mais que viver, é uma antropoiésis (2006: 34). Para eles, palavra é
sinônimo de alma, o que significa que perder a palavra signifique
perder a própria alma.
12
Se a palavra abandonar o corpo, o sujeito
morre. Para eles, a origem do mundo se confunde com a origem da
palavra. Na mitologia, Ñande Ru Papa Tenonde, o último-primeiro
grande pai, depois de se criar a partir de si mesmo, proferiu a pala-
vra, e o mundo surgiu.
A citação demonstra que o homem, então, é criado através da
palavra. A palavra-alma é enviada pela divindade e é a presença dela
que engravidará uma índia guarani. Nesse sentido, para essa etnia,
não é exagero dizer, a procriação, antes que nada, é um ato poético-
religioso, mais que um ato erótico-sexual (Diegues, 2006: 39). O
nome é a própria coisa, a própria pessoa. Na tradução de Josely Vi-
anna Baptista:
Ñamandu, nosso pai verdadeiro, o primeiro,
11
Os cantos foram publicados no “Ayvu rapyta: textos míticos de los Mb-Guarani del Guairá”, em 1959,
como um material integrante do Boletim de Antropologia da FFLCH-USP. A edição de que se valeu Josely
para Roça Barroca é a de 1992, preparada por Bartolomeu Meliá (Assunção, Ceaduc-Cepag, 1992).
12
Relembremos que quando um guarani dá a sua palavra para alguém, ele está dando a sua própria alma. Essa
identificação é tão forte que eles usam a expressão Ñe´eng para se referir à palavra-alma. É a palavra que põe
o homem em pé. E é por isso que quando alguém está doente ou prestes a morrer, na tribo, um xamã, muitas
vezes troca o nome do doente para salvar-lhe a alma. O que demonstra a crença de que a palavra possui um
poder sobrenatural, capaz de enganar a própria morte. Se ela for bem utilizada, pode levar o indivíduo ao
estado de perfeição, capaz de alcançar a Terra Sem Mal, ou seja, a imortalidade do corpo (2006). O prestígio
de um guarani, por exemplo, pode estar ligado à quantidade de cantos que memoriza e à qualidade do modo
de dizê-los.
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 76 ISSN 2422-5932
De uma pequena parte de seu ser-de-céu,
Do saber contido em seu ser-de-céu,
E sob o sol de seu lume criador,
Alastrou o fulgor do fogo e a neblina que dá vida.
Incorporando-se,
Com o saber contido em seu ser-de-céu,
E sob o sol de seu lume criador,
Iluminou-se a fonte da fala
(Baptista, 2011: 31)
13
Em Os primitivos ritos do colibri, um dos cantos traduzidos por
Josely, o pai primeiro, como no Ayvu Rapyta, aparece a sós desdo-
brando-se de si mesmo. Veio, então, um Colibri e pingou em sua bo-
ca alimentos do céu e a palavra brotou. Josely usa palavras justapos-
tas (ser-de-céu, palavra-alma, esteio-cetro) e palavras-montagem, pa-
ra dar conta da ideia contida no original. Produz também volteios de
ideias e imagens, sonoridades inusitadas, aliterações, assonâncias, pa-
ronomásias, na expectativa de transcriar, ou seja, de traduzir melhor.
Segundo o tradutora-poeta, ela tentou dar nuances ao trabalho que já
vinha desenvolvendo desde seus primeiros livros, uma espécie de
sensualização da linguagem, a convocação do corpo à leitura, co-
mo o uso de palavras aeradas, em blocos cerrados do texto, com o
objetivo de criar uma estrofação sensível, em que a dispersão das
letras quer desautomatizar o olhar e trazer o fôlego do leitor ao cen-
tro mesmo do poema (2011: 14):
Nosso primeiro Pai, sumo, supremo,
A sós foi desdobrando a si mesmo
Do caos obscuro do começo.
As celestes plantas dos pés,
O breve arco do assento,
A sós foi desdobrando, ereto,
Do caos obscuro do começo.
O lume de seus olhos-de-céu,
Os divinos ouvidos,
As palmas celestes arvorando o cetro,
13
Ñamandu Ru Ete Tenondegua / oyvára peteigui, oyvárapy mba´ekaágui / okuaararávyma / tataendy, tata-
china ogueromoñemoña // oãmyvyma, / oyvárapy mba´ekuaágui / okuaararávyma /ayvu rapytarã i oikuaa
ojeupe.
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 77 ISSN 2422-5932
As mãos celestes com os brotos floridos
Abriu Ñamandui, desabrochando
Do caos obscuro do começo
(Baptista, 2011: 25)
14
Vejamos outro fragmento do Ayvu Rapyta para perceber composi-
ção semelhante:
A fonte da futura palavra tendo aflorado,
Com o saber contido em seu ser-de-céu,
E sob o sol de seu lume criador,
De si foi aflorando a fonte do amor.
Tendo aflorado a fonte da fala,
Tendo aflorado um pouco de amor,
Com o saber contido em seu ser-de-céu,
E sob o sol de seu lume criador,
O princípio de um som sagrado ele, a sós, criou.
Antes de a Terra existir,
No caos obscuro do começo,
Tudo oculto em sombras,
O princípio de um som sagrado ele, a sós, criou
(Baptista, 2011: 33).
15
Voltemos à relação palavra-alma. Bartolomeu Meliá observou que o
mais importante de toda essa psicologia teológica está na convicção
de que a alma não está inteiramente acabada, senão que se faz com
a vida do homem e o modo de seu fazer-se é o seu dizer-se. A histó-
ria da alma guarani é a história de sua palavra, a série de palavras que
formam o hino de sua vida (em Diegues, 2006: 40).
Adolfo Colombres relembra que é no Opy, casa de orações dos
guaranis, que se entoam, de frente pro sol nascente, as ñe´e porã ou
as belas palavras, linguagem comum aos homens e aos deuses (em
Diegues, 2006: 46). As ñe´e porã têm finalidade religiosa, não sendo
utilizadas no dia a dia. A dimensão sagrada da palavra oral para os
14
Ñande Ru Papa Tenonde / Gueterã ombojera / Pytú ymágui. // Yvárapypyte / Apyka apu´a i, / Pitû yma
mbytére / Oguerojera // Yvára jechara mba´ekuaa / Yvára rendupa, / Yvára popyte, yvyra´i, / Ivára popyte
rakã poty, / Oguerojera Ñamanduî / Pytû yma mbytére.
15
Ayvu rapytarã i oikuaámavy ojeupe, / oyvárapy mba´ekuaágui, / okuaararávyma / mborayu rapytarã oikuaa
ojeupe. / yvy oiko´eyre, / pytû yma mbytére, mba´e jekuaa´eyre, okuaararávyma/ mboraru rapytarã i oikuaa
ojeupe. // Ayvu rapytarã i oguerojera i mavy, / mborayu petei i oguerojera i mavy, / oyvárapy mba´ekuaágui,
// okuaararávyma / mba´e a´ã rapyta petei oguerojera. / yvy oiko´eyre, / pytu yma mbytére, mba´e jekuaa´eyre
/ mba´e a´ã petei oguerojera ojeupe.
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 78 ISSN 2422-5932
Guarani demonstra o motivo de muitas vezes eles desdenharem das
palavras dos brancos que, segundo os índios, perderam a capacidade
de enxergar o poder das palavras.
16
Os conceitos de poesia e de literatura são ocidentais, sendo es-
tranhos aos índios, mas as belas palavras, as palavras adornadas,
inspiradas, são o que em sua linguagem e cultura mais se aproxima da
poesia, em termos de aspectos sonoros e metafóricos. Trata-se, assim
como na poesia, de uma linguagem voltada para a própria linguagem,
cuja função não é comunicar, mas produzir acima de tudo beleza
com a linguagem, sacralizando a própria palavra.
17
Naturalmente, as
metáforas são constantes nesse trabalho linguístico não-pragmático.
Por exemplo, para designar a flecha, as ñe´e porã usam, por exemplo,
a expressão pequena flor do arco, ou para falar do cachimbo, usa-
se a expressão o Esqueleto da bruma. Com tais cantos, por exem-
plo, não apenas se reconstituem os mitos cosmogônicos, mas tam-
bém curam-se doenças. Espantam-se maus espíritos, e preserva-se o
mundo da destruição. Assim como o belo da poesia, o belo (porã)
das ñe´e porã refere-se ao adornado, não à beleza natural:
Se o belo, então, é um acontecimento cultural, deve-se falar de pala-
vras embelezadas pelos que as cultivam, cuja função é elevar (e não
apenas manter) seu esplendor. Embelezamento que não busca desig-
nar e nem sequer comunicar, como observa Hélène Castres, pois as
belas palavras, voltadas para si mesmas, não servem mais que para
celebrar (ou comprazer-se em) sua própria divindade, como uma lin-
guagem consagrada ao canto, não ao conhecimento do mundo (Co-
lombres em Diegues, 2006: 47).
Pierre Clastres, em A Fala Sagrada, analisou a dimensão metafísica do
pensamento guarani. Ele aponta também para a dimensão sacra dada
pelos mbyá às ñe´e porã. Se por um lado os índios consentem facil-
16
Crítica semelhante agora focada na supremacia da palavra oral em relação à escrita - é apresentada por
Davi Kopenawa, índio Yanomami, em A Queda do Céu (2015), ao observar que os brancos não conhecem de
fato as coisas da floresta, pois contemplam sem descanso as “peles de papel” em que desenham suas pró-
prias palavras: “Se não seguirem seu traçado, seu pensamento perde o rumo. Enche-se de esquecimento e eles
ficam muito ignorantes. Seus dizeres são diferentes dos nossos. Nossos antepassados não possuíam peles de
imagens e nelas não inscreveram leis. Suas únicas palavras eram as que pronunciavam suas bocas e eles não
as desenhavam, de modo que elas jamais se distanciavam deles. Por isso os brancos as desconhecem desde
sempre” (Kopenawa e Albert, 2015: 75-76).
17
Como não ver aqui o conceito de poesia, segundo o formalismo russo, em que a função da linguagem está
voltada para a própria mensagem, interessada em produzir estranhamento, ou seja uma fala diferente da fala
convencional.
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 79 ISSN 2422-5932
mente em contar aos brancos seus mitos, eles recusam, em contra-
partida:
[...] de maneira mais firme, senão agressiva, como tivemos experiên-
cia pessoal, deixar entreouvir o menor fragmento do que chama de
Belas Palavras, lugar de um saber esotérico que descreve sucessiva-
mente, em uma linguagem de encantamento, a gênese dos deuses, do
mundo e dos homens (1990: 15).
Sobre os Mbyá-Guarani trata-se hoje de uma sociedade marginalizada
que sobrevive a duras penas no interior, por exemplo, de algumas lo-
calidades especificas do Paraná e do Paraguai. Para Ludovido Pin,
"valorizar a una sociedad marginalizada significa ayudarla a ganar o
volver a ganar su lugar dentro de los procesos de intercambios" (em
Sequera, 2006: 21). Essa ideia de intercambio não está desvinculada
de uma ideia de compromisso. Reconhecer, estudar, está direta ou
indiretamente ligado à tarefa de respeitar e restituir a ela o que lhe
foi usurpado.
18
Para Josely Vianna Baptista (2011), os Mbyá constituem uma
das sociedades autóctones vinculada a etnias Guarani-Tupi, oriundas
supostamente da bacia do médio Paraná. Não há definição deles nas
fontes etnográficas do culo XVI, nem textos posteriores de cronis-
tas ou missionários a eles se referem, unindo-os provavelmente aos
demais guaranis.
Guillermo Sequera que registrou gravações de canções e demais
peças musicais dos Mbyá observa que ouvir sua música é "encostar
os ouvidos naquilo que nos foi negado: reconhecer sua grande capa-
cidade criativa e, assim, ouvir os vestígios sonoros de nossa memória
cultural" (2006: 14). Não é outro o objetivo que nos move aqui. No
nosso caso, tratando de suas palavras poéticas. Conhecer sua poesia
é ler/ouvir aquilo que nos foi negado, o conhecimento de sua arte.
Como para os Guaranis palavra e alma estão interligados, conhecer
as palavras de sua cultura é a uma possibilidade de conhecer também
a sua essência. Portanto a experiência poética desse povo está na es-
18
Atualmente, a porcentagem de terras reservadas aos povos no Brasil é mínima, principalmente se conside-
rarmos esse fato em relação ao contexto pré-colonial, bem como diante das necessidades atuais. Josely Vianna
Baptista escreveu que os Guaranis, por exemplo, tempos sofrem com a drástica diminuição de seus territó-
rios, pois a sua organização gira em torno do "tekoha": "Com o desmatamento feroz a que vêm sendo subme-
tidas as florestas sul-americanas, esse lugar está deixando de existir, e consequências disso são, por exemplo,
a morte de crianças por fome e desnutrição e o alto índice de suicídios entre os Guarani" (2011: 98-99). Isso
sem falar das políticas nacionais no Brasil voltadas contra os índios hoje.
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 80 ISSN 2422-5932
sência de suas vidas. O que nos leva, pensando em sua cultura, a
problematizar o próprio conceito de arte. Se de um lado, para a
perspectiva ocidental, aristotélica, a arte imita a natureza, de outro,
para uma perspectiva ameríndia poderíamos dizer que arte e natureza
estão intimamente ligadas. Os índios, ao pintarem o próprio corpo e
não uma tela, por exemplo, estão poetizando o corpo, a vida, fazen-
do arte de vanguarda, performance (é claro que do ponto de vista de-
les não faz sentido pensarmos em vanguarda ou performance, já que
estamos diante de um ritual. E esse ritual, religioso por excelência, já
é uma arte).
Ouvindo o índio
O perspectivismo, essencial na cultura indígena, que se materializa
em sua poética, seja em mitos, poemas, bem como poemas míticos
e/ou cosmogônicos, nos ajuda a imaginar uma poética da alteridade,
que se traduz numa ética da heterogeneidade, produzindo uma expe-
riência intercultural capaz não só de traduzir para nós a ontologia
ameríndia, mas de nos possibilitar conhecer melhor a nós mesmos
pelo olhar do outro, colocando-nos nesse processo como o "outro
do outro". Como sugere a pesquisadora Ana Carolina Cernicchiaro,
somente onde a identidade está ciente de sua construção a partir do
outro, "somente onde o sujeito se assume como processo de identifi-
cação sujeito à diferença, é que o outro emerge" (Cernicchiaro, 2015:
257). Se a literatura é o lugar onde subsiste a ideia de "dom", para
além do conceito de mercadoria, e se a literatura é o lugar de libertar
a língua de toda e qualquer castração, cabe a ela imaginar nessa "lín-
gua menor", a que foi relegada a língua/poética do outro, a possibili-
dade de uma outra comunidade, uma comunidade na qual a sua cul-
tura possa representar um espaço de resistência ao mesmo tempo
poética e política.
Se como nos ensinou Roland Barthes (1992) a língua não é nem
reacionária, nem progressista, mas simplesmente fascista não por
impedir a dizer, mas por obrigar a dizer isso significa que a literatu-
ra, e em especial a poesia, por ser o lugar de libertação da língua de
toda e qualquer castração, pode nos ajudar a imaginar outras formas
de ver e sentir o mundo, bem como de concebermos outros modelos
de comunidade.
O objetivo de nosso estudo, fruto de uma pesquisa sobre a lite-
ratura indígena, não é dar voz ao índio, bem como a sua poética, mas
sim de dar a nós mesmos a possibilidade de ouvi-la. Restituir-lhes a
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 81 ISSN 2422-5932
voz seria partir do princípio de que não há tal voz ou de que a mes-
ma foi silenciada. O índio nunca foi um ser desprovido de voz e o
branco, por sua vez, mesmo destruindo, mesmo matando ou impon-
do-lhe outra cultura, nunca conseguiu de todo silenciá-la. Cabe a nós
seguir seus rastros e voz, tal como se nos apresentam naquilo que
chamamos de poesia.
BIBLIOGRAFÍA
BAPTISTA, JOSELY VIANNA. Roça Barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
BARTHES, ROLAND. Aula (L. Perrone-Moisés, trad.). São Paulo: Cultrix, 1992.
BASTIDE, ROGER. O sagrado selvagem e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
CAMPOS, HAROLDO DE. Luz: a escrita paradisíaca”, en D. Alighieri Seis cantos do Paraí-
so. Recife: Gastão de Holanda, 1976.
CAVALCANTI PROENÇA, MANUEL. Roteiro de Macunaíma. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
CERNICCHIARO, ANA CAROLINA. Perspectivas Ameríndias na Estética Contemporâ-
nea, Crítica Cultural. Palhoça, vol. 10. núm. 2, 2015, 257-268.
CESARINO, PEDRO DE NIEMEYER. Quando a terra deixou de falar: cantos da mitologia marubo.
(Pedro de Niemeyer Cesarino organização, tradução e apresentação). São Paulo:
Editora 34, 2013.
CLASTRES, PIERRE. A Fala Sagrada: Mitos e Cantos Sagrados dos Índios Guarani (Nícia Adan
Bonatti, trad.). Campinas: Papirus, 1990.
DIEGUES, DOUGLAS. Viagem ao orvalho em chamas, en Guillermo Sequera Kosmofo-
nia Mbya Guarani. São Paulo: Mendonça & Provazi Editores, 2006.
FALEIROS, ÁLVARO. Traduções canibais: uma poética xamânica do traduzir. Florianópolis:
Cultura e Barbárie, 2019.
HELDER, HERBERTO. Ouolof. Poemas mudados para português por Herberto Helder. Lisboa:
Assírio & Alvim, 1997.
JECUPÉ, KAKÁ WERÁ. O trovão e o vento: um caminho de evolução pelo xamanismo tupi-guarani.
São Paulo: Polar Editorial; Instituto Arapoty, 2016.
KOPENAWA, DAVI Y ALBERT, BRUCE. A Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami (B.
Perrone-Moisés, trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MUSSA, ALBERTO. Meu destino é ser onça. Rio de Janeiro: Record, 2009.
RISÉRIO, ANTONIO. Textos & Tribos: Poéticas extraocidentais nos trópicos brasileiros. Rio de
Janeiro: Imago, 1993.
SEEGER, ANTHONY. Por que cantam os Kisêdjê: uma antropologia musical de um povo amazônico
(G. Werlang, trad.). São Paulo: Cosac Naify, 2015.
Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 82 ISSN 2422-5932
SEQUERA, GUILHERMO. Kosmofonia Mbya Guarani. São Paulo: Mendonça & Provazi Edi-
tores, 2006.
THIÉL, JANICE CRISTINE. Pele Silenciosa, pele sonora. A literatura indígena em destaque. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
VIVEIROS DE CASTRO, EDUARDO. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropo-
logia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
VIVEIROS DE CASTRO ET AL. Araweté: um povo tupi da Amazônia (3 ed. revista e amplia-
da). São Paulo: Edições Sesc, 2017.