Bona Moreira, “Poética ameríndias” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 6 / Julio 2019 / pp. 63-82 67 ISSN 2422-5932
aqui. Devolver a literariedade,
que lhe é sua por direito, é urgente
em tempos ainda de genocídio cultural, social e humano. Salvar as
palavras indígenas é uma forma de salvar a sua alma –não como ten-
taram religiosamente os jesuítas, mas apenas com espírito poético–,
já que para boa parte dos índios, em especial para os guaranis, suas
palavras são sua própria alma.
Literatura é também coisa de índio, xamã é poeta
Em um mundo no qual cada vez mais o modelo cultural dominante
dirige nosso olhar para aquilo que tal sistema deseja que seja visto,
no qual aquilo que deve ser olhado é praticamente pautado por uma
espécie de imposição, aprender a ver o outro, bem como a ouvi-lo, é
tarefa que exige disposição, lucidez e coragem. Ouvir a voz que se
depreende das poéticas ameríndias é uma forma não só de inscre-
vermos outros sentidos para uma literatura ainda pouco lida, bem
como, e principalmente, devolvermos potência para a literatura en-
tendida como pensamento selvagem. Se o mito que se depreende de
tal poética se transformou em literatura, cabe-nos dar atenção às suas
palavras e à força de sua sobrevivência e resistência. Poderíamos
pensar na produção poética dos índios como uma espécie de etnopo-
esia.
Não se pode deixar de pensar na etnopoesia como o espaço no
qual se processa uma certa indissolubilidade entre mito e poesia, lu-
gar também pautado por um perspectivismo que nos convida a redis-
cutir e a reinventar as relações entre natureza e cultura. No perspec-
O conceito nos chega dos formalistas russos, para quem a literariedade é o que faz do poema um poema.
Para eles, o caráter literário se estabelecia a partir de traços diferenciais entre um discurso e outro. E o que
conferia literariedade a um texto era o desvio da norma, os usos que se fazia de um texto, bem como a capaci-
dade de um poema tornar estranho um conteúdo, ou seja, produzir estranhamento. No caso da poesia, isso vai
desde o uso de metáforas até a forma diferente de se escrever e de se ler um texto. Antonio Risério apontou
para a necessidade de um resgate verdadeiramente poético das textualidades indígenas, em oposição ao mero
registro etnográfico de seus textos. Isso significa traduzir –ou melhor, “transcriar”– tais poéticas com olhar
também poético, numa atividade capaz de recuperar suas falas ancestrais. Risério reclama, insistentemente, da
escassez de “recriações”, de textos afro-ameríndios: “Falo de recriações poéticas (poesia com poesia se paga),
não de versões etnográficas “conteudistas”, onde também estamos mal servidos” (1990: 23). Recriação poéti-
ca é o que Josely Vianna Baptista consegue fazer em Roça Barroca, como veremos.
Como sugere Luis Dolhnikoff, "etnopoesia é mito em linguagem poética: portanto, mito antes de poesia"
(em Baptista, 2011). E acrescento aqui, poesia depois de mito, ou ainda, perspectivamente falando, as duas
coisas juntas. Interessa-nos, aqui, mais do que analisar os textos propriamente indígenas, refletir sobre experi-
ências interculturais que se estabelecem a partir do diálogo fecundo entre a literatura e a poética ameríndia.
Antonio Risério, por sua vez, criticando o conceito de etnopoesia, sugere que não devemos incorrer no erro de
sobrepor um “rótulo positivo genérico” (1993: 22) a essa massa textual. Janice Thiél, seguindo o mesmo
olhar, escreve que todas as poéticas podem ser consideradas etnopoéticas, porque “são configuradas de acordo
com normas próprias a cada cultura produtora de textos” (2012: 36).