Byron, “Para uma sobrevivencia Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 8 / Julio 2020/ pp. 111-135 111 ISSN 2422-5932
PARA UMA
SOBREVIVÊNCIA DO LATINO-
AMERICANO: ENCARAR A FACE
OBLITERADA DA ACUMULAÇÃO
PRIMITIVA
FOR A LATIN AMERICAN SURVIVAL: FACING THE
OBLITERATED FACE OF PRIMITIVE ACCUMULATION
Byron Vélez Escallón
Universidad Federal de Santa Catarina
Professor de Literatura hispano-americana na Universidade Federal de Santa Catarina.
Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (2014) e Profissional em Estudos
Literários pela Universidad Nacional de Colombia (2006). Pesquisador, editor, tradutor e autor do livro
Do tamanho do mundo: O Páramo de Guimarães Rosa com um Yavaratê (Premio Revista
Iberoamericana Mejor Tesis- Pitssburgh: IILI/Revista Iberoamericana, 2018).
Contacto: flint1883@yahoo.com.mx
ARTÍCULOS
Byron, “Para uma sobrevivencia Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 8 / Julio 2020/ pp. 111-135 112 ISSN 2422-5932
Fecha de envío: 13/01/2020 Fecha de aceptación: 25/04/2020
Latino-americanismo
Hegemonia
Política da ficção
Sociologia da imagem
Mediações do sensível
Este trabalho surge de uma provocação: a afirmação de que em grande proporção, ao menos nos
últimos vinte anos, o ciclo dos chamados populismos progressistas, os estudos literários e culturais
latino-americanos se mostraram insuficientes perante o propósito de aproximação entre realidades
sociais contemporâneas e as produções simbólicas que as acompanharam. A partir da consideração
desse marco problemático, e como uma maneira de suplementá-lo, o trabalho elabora algumas
considerações sobre um “pensar a América Latina em seus limites” nos âmbitos conceitual,
paradigmático e situacional para, adicionalmente, apresentar a exposição Princípio Potosí. ¿Cómo
podemos cantar el canto del Señor en tierra ajena? (Museu Reina Sofía, 2010) e sua contestação,
intitulada Princípio Potosí reverso (Museu Reina Sofía, 2010). Através dessa abordagem de duas
cenas estéticas contrastadas, apesar de coincidentes em seus “objetos”, o trabalho pretende evidenciar
modos do (cada vez mais urgente) latino-americanismo: um, que milita subterraneamente em prol de
uma alienação que, entretanto, declara combater; e outro que, longe de constituir um discurso de
contestação a partir de imperativos categóricos “universais”, e longe da cidade letrada, prefere elaborar
uma cena estética e extrair potência política dos modos de vida e das disposições sensíveis de
coletividades e sujeitos tradicionalmente excluídos tanto da cidadania quanto da arte.
RESUMEN
PALABRAS CLAVE
Latin Americanism
Hegemony
Fiction politics
Sociology of image
Sensitive mediations
ABSTRACT
KEYWORDS
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Número 8 / Julio 2020/ pp. 111-135 113 ISSN 2422-5932
“Tipo a noite, cê vê tudo preto
Tipo um blackout, cê vê tudo preto
São cantos de esquinas, de reis e rainhas
Yeah, o mundo é nosso”.
Djonga (2017)
I. Pensar no limite
Toda classificação se sustenta numa determinada percepção de
realidade. Se entendemos a política como uma disposição de corpos
no espaço social, então toda classificação, enquanto ordenação e
hierarquização de objetos, por exemplo artísticos ou literários, será
também uma operação de catalogação de mundo, isto é, uma
operação política.
Este trabalho surge de uma provocação lançada por Raul Antelo
na conferência Pensar a América Latina em seus Limites, proferida
na Universidade Federal de Santa Catarina em 2018 com motivo da
abertura do encontro das universidades do Grupo de Montevidéu
(AUGM).
1
E essa provocação era, por sua vez, motivada por um
texto de Jens Andermann, de 2017, intitulado Para una
hermenéutica de la enemistad: los estudios culturales y el nuevo
fascismo, em que se afirma que em grande proporção, ao menos
nos últimos vinte anos, o ciclo dos chamados populismos
progressistas, os estudos literários e culturais latino-americanos se
mostraram insuficientes perante o propósito de aproximação entre
realidades sociais contemporâneas e as produções simbólicas que as
acompanharam. Nesse sentido, Andermann se pergunta:
Como pode uma disciplina [...] ter fracassado tão calamitosamente
ao abordar a reconfiguração do campo de produção simbólica que
começou, ao menos, desde a chegada ao poder de Hugo Chávez, em
1998, e que, recentemente [...] com os golpes jurídico-parlamentares
em Honduras, Paraguai e Brasil, parece ter chegado ao fim do seu
trajeto, para ser suplantada por uma total usurpação política,
1
E dois dias após o resultado das eleições presidenciais brasileiras de 2018.
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jurídica, midiática e, onde for necessário, militar, de qualquer forma
de poder popular organizado? (2017: 82)
2
Apesar do excessivo catastrofismo que parece evidenciar a
enunciação desse fracasso, é possível dizer que essa impressão
calamitosa se reforça por um efeito de leitura centrado e hegemônico
3
que, de fato, constata que isso ocorreu não somente quando tais
estudos abordaram esses fenômenos e produções a partir do
imperativo categórico de um autonomismo cada vez mais cooptado
pelo neoliberalismo em sua manifestação ultraconservadora (Cf.
Vélez, 2019), mas também com embasamento em um republicanismo
elitista que não conseguiu lidar com os chamados Populismos (se
aceitamos, com Ernesto Laclau [2005], essa denominação para a
racionalidade inerente ao período acima mencionado) de outro lugar
que não fosse essa forma de autoritarismo que Jacques Rancière
denominara O ódio à democracia (2014).
Perante essa insuficiência, se faz necessário pensar a história a
partir de regimes de simultaneidade temporal que permitam ir além
de qualquer metafísica do progresso (porque o progresso é o
imperativo caterico do republicanismo elitista: e baste como prova
o lema inscrito na bandeira do Brasil). Isto quer dizer que é urgente
pensar e levar em consideração quem contemporaneamente
pensou! conceitos de tempo e de história que afastem os
universalismos iluministas, esses universalismos iluministas que,
focando apenas particularismos de um lugar que nunca foi para
ninguém, ou seja, estando ao mesmo tempo em todos os lugares e
em nenhum lugar, como deus, acabaram por expulsar do campo toda
manifestação de afetos, gestos, traços, paixões ou corporalidades.
À procura dessas singularidades seqüestradas e perante o
imprescindível debate a respeito das insuficiências apontadas, na
2
Tradução própria como, daqui em diante, todas as traduções de textos originalmente publicados em
castelhano.
3
Andermann afirma que os vocabulários críticos do campo permaneceram imunes às linguagens
políticas forjadas na América Latina do fim do século XX e que, talvez por isso, também falharam na
abordagem do “salto à direita” contemporâneo. Dentre outros motivos, o autor identifica a codificação
do trabalho crítico, a privatização das plataformas de publicação acadêmica, as políticas de “acesso
livre” e a lógica dos “índices de impacto” complexo de fenômenos e práticas que o artigo em questão
propõe superar através de uma “hermenêutica da inimizade”, isto é, através do retorno a uma crítica
ideológica que identificasse os afetos de “suspeita e gozo” projetados sobre antagonistas dentro do
próprio campo. O “campo”, entretanto, é abordado nesse trabalho apenas na sua manifestação norte-
americana, e às vezes europeia, com motivo do quinquagésimo aniversário de LASA, e tomando como
exemplo a historia do Journal of Latin American Cultural Studies (Traves/sia).
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conferência acima mencionada Antelo propunha Pensar a América
Latina em seus limites, isto é, em suas possibilidades concretas.
Como pensar esse lugar, e inclusive essa arché, tão constituídos por
formas-de-lei quanto arbitrariamente instituídos como imagens
eficazes? Em que medida a divisão moderna entre significado e
imagem, entre som e sentido assim como aquelas, correlatas, de
metropolitano/periférico, alto/baixo, culto/popular, geral/particular,
arte/kitsch, etc. conserva sua operacionalidade em um mundo menos
constituído por signos do que por signaturas, isto é, menos
constituído por comprovações racionais do que por projeções de
desejo? Num mundo em que não se completa mais o círculo
hermenêutico e em que a terra se torna plana, num mundo em que as
instituições fantasiam de racionalidade e necessidade as vontades
assassinas do capital financeiro, cooptando assim multidões super
exploradas e super expostas, como jogar ainda o jogo do
reconhecimento e da identidade? Como jogar esse jogo se América
Latina se apresenta protéica, cintilante, aparecendo e desaparecendo
como se arrastada pelos tempos?
Longe dos protocolos do iluminismo sacrificial, que sempre
projetou os vencidos como efeitos de um inevitável dano colateral e,
no fim das contas, justificado, um pensamento latino-americano
radical, sempre no limite, procuraria debater epistemologias a partir
das conseqüências, das catástrofes, para desse modo transformar as
ruínas em sementes e, talvez, tornar audíveis aquelas demandas de
justiça o único não-desconstruível, de acordo com o Derrida de
Espectros de Marx (2002) que constituem o espectro/o encanto de
uma América Latina inédita, ou pelo menos insistentemente inaudita.
Esse é o propósito de um trabalho futuro, de que este artigo
apenas pretende ser um avanço. Nas páginas a seguir, desenvolverei
algumas considerações sobre esse pensar a América Latina em seus
Limites nos âmbitos conceitual, paradigmático e situacional para,
finalmente, enunciar uma das alternativas que entrevejo em relação
ao duro diagnóstico andermanniano. Quem sabe, como poderia dizer
parafraseando Guimarães Rosa, essa alternativa se encontre nas
margens da alegria.
II. Política da ficção
Contemporaneamente, A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro (2019),
ensaio do sociólogo Jessé de Souza, nos apresentou as singularidades
do ódio à democraciaem seu avatar brasileiro (bastante afim com
outros autoritarismos latino-americanos, vale pontuar). Enquanto
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uma vastamente difundida tradição interpretativa, com
representantes da relevância de Raymundo Faoro e Sérgio Buarque
de Holanda, apontava a um patrimonialismo herdado da metrópole
portuguesa, e retraduzido nos termos de um populismo tendente à
eternização no aparato de estado de uma elite política corrupta, Jessé
nos propõe a escravidão sadomasoquista e o massacre indígena
como origem verdadeira, a semente de toda a sociabilidade brasileira.
Se a tese do patrimonialismo herdado de Portugal oculta a corrupção
real de uma elite econômica sob a corrupção superficial de um
aparato político que apenas serve a essa elite econômica e financeira
(para Jessé o político corrupto apenas corresponderia ao
aviãozinho da grande aparelhagem de uma dominação oligárquica e
antipopular a verdadeira máfia), a tese complementar do
Populismo, um fantasma da vira-lata classe média, afasta qualquer
tentativa de efetiva participação popular na política, inclusive sob a
aparência de estar fazendo crítica social.
Quando pensamos que, em grande medida, os mais destacados
representantes latino-americanos da hegemonia nos estudos
literários e culturais têm seu alicerce em teses de racismo
culturalista
4
afins àquela do patrimonialismo herdado de
Portugal,
5
e que inclusive construíram seus protocolos a partir do
que Mabel Moraña denominara uma ideologia da transculturação
consistente em uma ideologia da mestiçagem de cunho liberal, que
apaga as diversidades numa espécie de denominador cultural médio,
o mestiço, que acabaria obliterando a relevância do negro e do índio
na história da literatura (2006); quando, concomitantemente,
entendemos junto com a Anita Martins Rodrigues de Moraes de Para
além das palavras: representação e realidade em Antonio Candido (2015), que
o pensamento da formação da literatura brasileira se alicerça nas
mesmas premissas evolucionistas do pensamento humanista e
humanizador que (como o próprio Jessé de Souza pontua)
marginalizou a mão de obra escrava do trabalho formal, isto é, do
mais básico instituto de cidadania, substituindo-a por mão de obra
europeia, em um processo de branqueamento que hoje em dia se
expressa através da infame premissa as minorias devem se curvar às
maiorias.... a partir dessas considerações podemos entender que foi
4
A denominação é de Jessé de Souza (2019).
5
Cabe relembrar uma das mais famosas entre as teses que constituem a hegemonia nos estudos
literários e culturais, e mesmo a estruturação curricular do ensino de literatura, do campo brasileiro: “A
nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das
Musas”. (Candido, 1975, p.9)
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justamente a obliteração, ou a marginalização, de subjetividades e
grupos singulares em prol de um desenvolvimento homogêneo,
aquilo que constituiu o nosso autoritarismo crítico
6
, o nosso racismo
culturalista.
Foi justamente o seqüestro dessas singularidades, sob o
pressuposto da necessidade de um discurso crítico autônomo e
objetivo, que fez o nosso campofracassar calamitosamente nos
últimos 20 anos, precisamente os anos do nosso último ciclo de
progressismo populista.
Uma alternativa teórica ao seqüestro da diferença, a meu ver,
está na compreensão daquilo que Jacques Rancière tem definido
como uma política da ficção (ou da literatura), consistente numa
resistência literária à premissa utilitarista da economia liberal e
moderna pela via da sobra, isto é, do dar a ver aquilo que ocultava
uma antiga fronteira aristotélica, aquela fronteira que separava as
existências dignas da ficção daquelas que não o são (2014; 2016).
Representando o não representado, dando a ver o não visto, a ficção,
para além de critérios de qualidade ou de estruturação narrativa
ou poética (causalidade, necessidade, verossimilhança,
correspondência de formas e conteúdos, de relações sociais e suas
transfigurações em formas literárias, etc.), seria uma forma do
cuidado, toda uma política em sentido estrito, uma política que
dispõe corpos no espaço simbólico, isto é, no espaço social que
Josefina Ludmer denominara a fábrica de presente que é a
imaginação pública (2010: 3), não pela via da hierarquização, mas
pela via de uma ampla e crescente exposição de demandas:
o excesso de ficção não é a ilusão que consola da realidade,
tampouco é o exercício de virtuosismo dos habilidosos. Ele pertence
ao dom que a vida tem, nos mais humildes e comuns, de transportar-
se além de si mesma para cuidar de si mesma (Rancière, 2018: 97).
Além de si mesmas, para cuidar de si mesmas, as vidas singulares
usariam da ficção. Desse modo, a ficção beiraria também a
catástrofe, pois, constituindo o espaço social, também se prestaria a
6
Entretanto: “a eficácia da arte não consiste em transmitir mensagens, oferecer modelos ou contra-
modelos de comportamento, nem em ensinar a decifrar as representações. Consiste, antes de tudo, em
disposições dos corpos, em recortes de espaços e tempos singulares que definem modos de estar
juntos ou separados, em frente a ou no meio de, dentro ou fora, próximos ou distantes”. (Rancière,
2014, s/p)
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mistificações. Disso é evidência o nosso presente de pós-verdade,
uma realidade constituída por ficções, às vezes, e cada vez mais
freqüentemente, indefensíveis, mas certamente operantes como
cunhagens de um desejo que para ser desejo deve estar atravessado
por pathos, isto é, pelo mal-estar de uma cultura que produz gozo e
sofrimento, que é veneno e remédio, dolor y gloria, não raramente de
maneira simultânea.
A questão que pode ser colocada à teoria e à crítica da
Literatura/da Arte é: de que modo constituir em nosso campo esse
desejo? Como fazer das nossas ficções críticas lugares de articulação
de demandas?
Acredito que na teoria da razão populista de Ernesto Laclau se
encontra uma resposta que pode suplementar coerentemente essas
perguntas. Um dos conceitos-chave dessa teoria, sintomaticamente
publicada em 2005, é o de significante totalizador vazio. Um
significante totalizador vazio é aquele que, não se preenchendo de
sentido a partir da universalização de um conteúdo essencial
(construído a partir de referentes particulares como: homem, branco,
heterossexual, de classe média, letrado, p.ex.), consegue articular em
si cadeias equivalenciais que incorporam um amplo número de
demandas não satisfeitas. De fato, e para que não se entenda
equivalência como homogeneidade ouigualdade, aquilo que
torna várias demandas equivalentes é, justamente, o fato de ainda
não terem sido satisfeitas. É a insatisfação de demandas de sujeitos e
coletividades diversos que os torna equivalentes... enquanto
insatisfeitos. Ou seja, não é a realização teleológica de uma
identidade cultural moldada a partir de um modelo subjetivo
elencado a paradigma que organiza as cadeias equivalenciais, mas a
constatação da catástrofe de um povo constituído pela sua
marginalização do exercício da cidadania.
Em América Latina essa catástrofe se chama conquista, se
chama escravidão, se chama etnocídio, se chama extracionismo
cultural e material, se chama golpe de estado, se chama ditadura, se
chama hoje neoliberalismo ultraconservador. Poderia se chamar
Necropolítica.
De que modo articular ao trabalho crítico ou teórico ou
historiográfico as demandas surgidas desses dados de origem?
Acredito, salvo engano, ser necessário con-siderar brevemente um
exemplo desse tipo de abordagem neste trabalho.
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III. Principio Potosí Reverso: face emblemática da acumulação
primitiva
Acredito que uma visão ampla, que não partisse da exigência de uma
dada intervenção se autoproclamar teoria latino-americana ou
estudos culturais latino-americanos, permitiria nuançar o
pessimismo de Jens Andermann. Existiram, sim, e existem,
intervenções teóricas e críticas que nos últimos 20 anos conseguiram
aproximar realidades sociais e produções simbólicas, dando desse
modo articulação a demandas nem sempre emanadas da hegemonia
do campo.
Justamente são propostas contemporâneas que problematizam
os construtos hegemônicos, geralmente a partir do pressuposto de
que não há identidades dadas, mas apenas processos de identificação
conjuntos, imaginários e móveis. Se essas propostas não são
estabilizáveis, se não trabalham para se tornar norma, não é por
acaso; se também não obliteram os dispositivos de captura de
subjetividades que confrontam, aquilo que no caso poderia se
designar História da Literatura/da Arte, o fazem para não incorrer
no apagamento das vozes que esses dispositivos hegemônicos
ocultaram, da catástrofe em que se sustenta toda metafísica do
progresso.
Para não me estender na explanação dessas propostas,
7
me
limito a dizer que o que me interessa nesses avatares singulares de
pensamento diferencial é que a universalidade não se apresenta como
um destino absoluto, nem como a manifestação de uma origem
determinada, mas sempre em relação com lugares de existência que,
por sua vez, se compreendem como incompletos, inclusive como
contraditórios, conflituosos, ou mutáveis, e sempre inseridos em
complexas redes de alteridade. Em palavras de Ernesto Laclau: ou
declaramos ser possível uma universalidade que não é politicamente
construída e mediada, ou afirmamos que toda universalidade é
precária e depende de uma construção histórica que se forma com
base em elementos heterogêneos (2018: 283).
7
Me limito a enumerar algumas delas: o cosmopolitismo pobre, o homossexualismo astucioso e, de
maneira abrangente, o entre-lugar de Silviano Santiago; o devir-índio e o perspectivismo ameríndio de
Eduardo Viveiros de Castro; a nação eventural, a ruinologia, a archifilologia ou o aturdito antelianos; a
espectrologia de Fabián Ludueña Romandini; a razão populista de Laclau e Mouffe; a colonialidade do
poder e do saber pensados pelos decoloniais; a necropolítica pós-colonial; a epistemologia feminista
situada do feminismo do Terceiro Mundo estadunidense, constituído a partir de uma consciência
cyborg opositiva/diferencial; o revival barroco/barroso contemporâneo; a realidadeficção de Josefina
Ludmer; etc.
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Nesse sentido, e numa perspectiva que considera que a
potência es toda ela, de fato, na própria posição de fronteira, de
limite, algumas propostas de leitura do latino-americano optam por
trabalhar pela escuta dessas vozes que se levantam, às vezes mesmo
da morte. Desse modo, o labor dos estudos literários e culturais
poderia servir à vida e à sobrevivência, e não simplesmente a
classificações afinal arbitrárias e autoririas que fazem do crítico
um guardião perante a porta de uma lei que supostamente seria para
todos, mas que nunca conseguiu de fato abrigar ninguém.
Com esse tipo de laboriosidade pautada por um esvaziamento
das noções metafísicas de “homem, tempo, ser, origem,
história, entre outras, um pensamento situado operaria como um
poderoso antídoto, tanto contra o etnocentrismo como contra o ethos
liberal que lhe é correlato, além de implodir, de maneira clara,
qualquer pretensão autonomista, pois ao mostrar os atos de leitura
como dependentes de marcos referenciais também se despojaria o
texto de qualquer centralidade semântica. Toda definição de valor,
assim, deve partir da sua própria enunciação situada, da invenção
explícita de um marco de referência não de uma formação, portanto,
mas de um performar pois um marco desse tipo exerce funções,
garante condições de legibilidade e circulação, ao mesmo tempo que
a passagem entre perspectivas impugna a aspiração logocêntrica a
uma universalidade sem diferença.
Vejo um caso paradigmático de intervenção teórica que, nas
últimas décadas, conseguiu aproximar realidades sociais
contemporâneas e produções simbólicas dando articulação a
demandas não emanadas da hegemonia do campo, na noção de ch'ixi,
a identidade manchada, contaminada, impura, teorizada pela sochologa
Silvia Rivera Cusicanqui (2015).
Meu exemplo, o objeto desta secção, é tomado de uma
exposição e de uma contra-exposição em que, precisamente, Rivera
Cusicanqui teve uma interessantíssima intervenção. Com ele quero
evidenciar duas maneiras de entender e de articular demandas não
satisfeitas. A exposição é exemplo de um falar-sobre, a contra-
exposição é exemplo de um falar-com.
8
Em 2010, no Museu Reina Sofia de Madri, ocorreu a
exposição Princípio Poto. ¿Cómo podemos cantar el canto del Señor en tierra
ajena?, em que os curadores, Alice Creischer, Max Jorge Hinderer e
8
Remeto a dois trabalhos de Didi-Huberman, em que se elabora uma distinção entre “falar por” ou
“em nome” dos povos, e “escrever com” os povos. (Cf. 2014a; 2014b)
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Andreas Siekmann, pretendiam evidenciar o papel central de algo a
que Karl Marx dava uma atenção apenas marginal no célebre capítulo
XXIV dOCapital (1867):
A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o
extermínio, a escravização e o soterramento da população nativa nas
minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a
transformação da África numa reserva para a caça comercial de
peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista.
Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da
acumulação primitiva (Marx, 2013: 821).
Para dar visibilidade a essa originariedade, e com o objetivo de re-
pensar a modernidade a partir do fato colonial, os curadores focaram
a exploração do Cerro Rico de Potosí, escolheram algumas pinturas
do barroco alto-peruano (associado a essa exploração) e convidaram
uma série de artistas contemporâneos para que dialogassem com as
imagens através da elaboração de obras para a exposição.
Cada artista deveria elaborar uma montagem, uma
performance ou intervenção a partir de uma dessas imagens barrocas
das escolas de Cuzco e Potosí, uma leitura crítica das pinturas
entendidas pela curadoria como produções paradigmáticas do
ornato e legitimação dos saques e genocídios coloniais ornato e
legitimação que deveriam levar o espectador a repensar a “função
que desempenha a indústria da arte atual como legitimação das novas
elites da globalização (Creischer et al., 2010: 12).
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Dado que são várias as intervenções que compõem essa exposição,
vou apenas me concentrar na intervenção que a agitadora callejera
María Galindo e o coletivo Mujeres Creando, de La Paz, fizeram da
pintura do barroco altoperuano Virgen del cerro Potosí (1720), central
na exposição, como evidencia a capa do catálogo Princípio Potosí. Essa
intervenção, intitulada Ave María, llena eres de rebeldía, se
compôs de vários painéis em que se expunha esse quadro,
9
circundado por algumas pichações, além de três vídeos.
9
Além de Las novicias (Anônimo, s. XVIII).
Fig. 1. Capa do catálogo da
exposição Princípio Potosí. ¿Cómo
podemos cantar el canto del Señor en
tierra ajena? (Museu Reina Sofía,
2010), com curadoria de Alice
Creischer, Max Jorge Hinderer e
Andreas Siekmann.
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Fig. 2. Virgen del cerro Potosí (1720).
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Por uma questão de espaço, não vou me deter mais do que na
descrição de um desses vídeos, intitulado Virgen Cerro,
10
que
reinterpreta a tela Virgen del cerro Potosí (1720) a partir de uma
premissa: a associação barroca entre o caráter maternal da Virgem e
as virtudes matriciais do cerro Potosí, lugar de minas de prata, é uma
associação patriarcal. Ou seja, o patriarcado pictórico equipara a
exploração da terra e a exploração da mulher, o que torna essa
imagem um emblema que deve ser desconstruído.
No vídeo, uma reprodução imensa do quadro é carregada por
alguns homens até um mercado público de La Paz (1:40), com
evidente surpresa dos habitantes quotidianos desse espaço público
(1:58), que interagem com a câmera e com o imenso painel como
com corpos estranhos e invasores. É um épater les indiens, claramente,
e perante os olhares perdidos dos viandantes e vendedoras o quadro
começa a ser desmontado (3:15) por uma modelo claramente alheia
a esse espaço. Na seqüência a modelo tenta interagir com algumas
das vendedoras do mercado; tenta coroar uma delas, por exemplo,
com um dos elementos desmontados do quadro barroco, sem grande
sucesso, pois a vendedora nem levanta a cabeça dos seus afazeres
diários para participar da intervenção (5:14 et ss). Apenas uma
criança aceitará brincar com a coroa, e isso será suplementado por
uma seqüência em que a atriz dança entre os postos do mercado, de
novo sem notória participação das vendedoras, tirando uma ou outra
tímida aceitação da brincadeira, mas sem grande entusiasmo. Depois
as colunas do patriarcado serão derrubadas pela modelo (7:59), e os
santos e anjos do quadro serão desnudados ostentando pênis quase
inexistentes e reposicionados no espaço da tela. O emblema que
data e nomeia a imagem será substituído pela pichação Soberania a
meu país, a meu corpo e uma menina negra será extraída (11:20)
dele para cortar, com um serrote, a cabeça do rei Felipe V.
Finalmente, a modelo passa a ocupar o lugar da Virgem no quadro,
enquanto a menina negra se abana com a cabeça cortada do rei, e cai
a segunda coluna do patriarcado.
Acredito que as premissas dessa intervenção se podem resumir
em trechos de dois dos textos que a compõem. O primeiro trecho,
tomado do vídeo Virgen Barbie, diz:
Que atrás de mim o capitalismo se derrube e perca até os deuses e as
virgens que o alicerçam. Que atrás de mim se arruíne o racismo e a
10
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RDU64HcMaZo
Byron, “Para uma sobrevivencia Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 8 / Julio 2020/ pp. 111-135 124 ISSN 2422-5932
cor branca que o sustenta. Que os úteros das mulheres brancas
possam parir filhas morenas. Que as morenas tenham filhos loiros. E
que o amor e o prazer nos mesclem e nos mesclem e nos mesclem.
Até diluir todas as estirpes de nobres, de patrões e de donos do
mundo...
11
E o segundo texto, mais sucinto, extraído de uma das pichações da
intervenção de María Galindo e o coletivo Mujeres Creando:
Fig. 3. Uma das pichações da intervenção “Ave María, llena eres de rebeldía”, por María
Galindo e o coletivo Mujeres Creando. Fotografia: Joaquín Cortés e Román Lores.
Evidentemente essa intervenção não somente parte do pressuposto
de uma nação colonizada e passiva: ela também produz uma invasão
violenta do espaço, que gera passividade, pois os habitantes do
mercado são aí mero pano de fundo, cenário suspenso na própria
estupefação. Objetos de museu, mas capturados no mercado público.
Evidentemente fala sobre os colonizados, mas não fala com eles. Há
um discurso, mas não necessariamente uma conversa; uma série de
slogans, nunca um diálogo.
11
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=nhqYLbmD3mg
Byron, “Para uma sobrevivencia Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 8 / Julio 2020/ pp. 111-135 125 ISSN 2422-5932
Agora vejamos o contra-exemplo. A socióloga boliviana Silvia
Rivera Cusicanqui, após rejeitar participar no projeto, propôs uma
contra-exposição (Sánchez, 2017). Essa contestação, intitulada
Princípio Potosí reverso (2010), consistiu numa publicação em que Silvia
e o grupo El Colectivo evidenciaram os efeitos que uma
remontagem, ou criação de uma cena estética situada, operariam
sobre essa primeira exposição.
Figs. 4 e 5. Capa e instruções de leitura do catálogo Princípio Potosí reverso (Museu Reina
Sofía, 2010), elaborados por Silvia Rivera Cusicanqui e El Colectivo.
Essa publicação, também editada pelo Museo Reina Sofia, de acordo a seus
curadores é um ensaio visual, que diagrama uma imagem territorial
inspirada nos kipus.
Byron, “Para uma sobrevivencia Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 8 / Julio 2020/ pp. 111-135 126 ISSN 2422-5932
Fig. 6. Imagem territorial da localização dos quadros elencados pelos curadores de
Princípio Potosí -Princípio Potosí reverso (Museu Reina Sofía, 2010).
Cada nó dessa imagem territorial representa um dos principais
lugares de recrutamento para a mita, que corresponde também aos
lugares da localização das pinturas elencadas pelos curadores no
Princípio Potosí. Essa cartografia recupera as rotas sagradas e
mercantis que organizaram o espaço andino colonial, sendo a
descoberta do Potosí a fratura temporal fundamental. Nos lugares
em que existiram wakas (lugares rituais incáicos), foram construídas
as igrejas interconectadas por caminhos coloniais. Nessas igrejas
ainda são visíveis os trabalhos de talhadores e pintores indígenas,
que domesticaram os deuses estrangeiros travestindo suas próprias
deidades com roupagens cristãs: a imagem santa é ao mesmo tempo
Byron, “Para uma sobrevivencia Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 8 / Julio 2020/ pp. 111-135 127 ISSN 2422-5932
singular, multifacetada e heterogênea. Não é o epifenômeno de uma
deidade única e abstrata (Rivera Cusicanqui et al., 2010: 3). Os
caminhos são lugares de trânsito de minérios, mas também são os
lugares do trabalho, da procissão sagrada ou festiva, da reflexão e da
constituição de legitimidades de lideranças locais, de rebeliões como
a de Tupac Katari em 1781. E os caminhos estão interligados por
pontos estratégicos os templos de Carabuco, Caquiaviri,
Chuchulaya, Guaqui, San Pedro, Tata Gran Poder, etc. que servem
tanto à organização produtiva quanto à organização política
articuladora das rotas mercantis entre Qusqu e Potosí, através dos
caminhos/kipus que amarraram a coca com a prata (8). As pinturas,
por sua vez, não foram somente ornato e legitimação dos saques e
genocídios coloniais, mas também foram ressignificadas localmente,
de acordo à ritualidade indígena.
Deste modo, a ênfase não está somente sobre as estruturas e
cadeias de dominação, mas também, e principalmente, sobre os
espaços concretos de negociação e resistência negociação e
resistência que, claro está, têm as mulheres indígenas como agentes
fundamentais, como evidenciam as muitas fotografias que no
catálogo Princípio Potosí Reverso (2010) representam mulheres
habitando e trabalhando nos espaços supraditos. Assim, enquanto a
exposição focava uma cartografia mundial, a contra-exposição
reterritorializava as pinturas barrocas, fazia ênfase no contexto de
produção e uso dessas imagens sagradas, atravessadas pelas lógicas
coletivas em que estiveram e estão inseridas.
O que vemos nos olha: note-se o contraste com a proposta de
María Galindo. Enquanto essa proposta partia do pressuposto de
uma imposição patriarcal colonizadora, a proposta de Silvia Rivera
Cusicanqui entende artistas e mulheres, na sua relação com a
sacralidade barroca, como agentes ativos da sua própria história. Não
vítimas exclusivamente, mas força de resistência, de alegria e de
preservação da vida. Não apenas colonizadas, mas sujeitos que, na
encruzilhada de ter que dar satisfação a demandas tão irreconciliáveis
quanto inescapáveis, articulam uma epistemologia ch'ixi, a identidade
manchada, contaminada, impura: catolicismo, sim, e proto-
capitalismo também, mas ao mesmo tempo ritualidade e economia
aymaras e quéchuas, quechumaras.
12
Uma dupla entranha, uma alma
12
Ch’ixi, de acordo ao “glossário” apresentado em Sociología de la imagen (2015), significa “cinzento com
manchas miúdas de branco e preto que se entreveram”. Cito, a seguir, trecho da eloqüente definição de
Double bind, com que Rivera Cusicanqui suplementa essa definição de ch’ixi: Double bind: Termo
cunhado pelo antropólogo Gregory Bateson para se referir a uma situação insustentável que denomina
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dividida, um aprender a viver entre comandos contradirios, um
entre-lugar. Desse modo, o Princípio Potosí Reverso nos permite pensar a
resistência para além de valores universais e em função de práticas
micropolíticas quotidianas de comunidades que habitam os espaços
mercantis e sagrados.
O tecido territorialse inscreve nos corpos, nas formas de
trabalhar, beber, dançar, de marchar, de compartilhar a comida e a
cama (Rivera Cusicanqui et al., 2010: 3) e, assim, a contra-exposição
nos permite dar relevância ao modo como os dispositivos a imagem
religiosa barroca, a maternidade, a matricialidade, o catolicismo não
somente capturam, mas se desdobram em linhas de força, em linhas
de enunciação, em linhas de visibilidade, em linhas de fratura e em
linhas de subjetivação: sacralidade pagã da terra.
13
A contra-
exposição pensa, portanto, no limite, um cenário latino-americano da
modernidade ou uma modernidade em suas possibilidades concretas.
Justamente o tipo de modernidade que se gerou em e a partir da
colonização e exploração do Cerro Rico de Potosí:
Tudo isso entreteceu uma larga faixa chixi mediadora e transgressora
dos novos sistemas de intercâmbio mercantil, linguístico e
simbólico. Assim, nasceu uma práxis de relacionalidade reversa,
resistente à colonização religiosa e econômica. A apropriação de
imagens, rituais e cultos católicos, armados dessa maneira com novas
facetas e poderes, constituiu a nossa modernidade e nossa luta de
classes, tanto na era colonial quanto no akapacha [aqui/agora] do
capitalismo globalizado (Rivera Cusicanqui et al., 2010: 71).
Na exposição, a colonização aparece vitoriosa, daí a sua glorificação da
mestiçagem como diluição de todas las estirpes”; na contra-exposição não,
pois longe da cidade letrada, procura toda potência na escuta de vozes
obliteradas e na visibilidade da face oculta da acumulação primitiva. Escuto
esse afeto, o afeto do falar-com, e um uso não metafísico da identidade ou
‘duplo constrangimento’. Este ocorre quando ‘há dois imperativos conflitantes, nenhum dos quais
pode ser ignorado, e isso deixa a vítima perante uma disjuntiva de impossível resolução, pois qualquer
uma das demandas que queira satisfazer anulará a possibilidade de cumprir com a outra’. Aqui usamos
a tradução ao aymara chuyma para nos referirmos a uma ‘alma dividida’, ou literalmente uma dupla
entranha (chuyma). Se relevamos essa expressão de suas tonalidades moralizantes, teremos exatamente
uma situação de double bind. Ao reconhecimento dessa ‘dobra’, e à capacidade de vivê-la criativamente,
temos dado o nome de epistemologia ch’ixi, que leva a habitar a contradição de modo que possamos
nos libertar da esquizofrenia que pressupõe” (Rivera Cusicanqui, 2015: 326).
13
Esse desdobramento corresponde à interpretação que Deleuze (1989) elaborou do conceito
foucaultiano de “dispositivo”.
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das formas nesta contra-exposição ch'ixi: a identidade manchada,
contaminada, impura, feita de atritos de uma dialética sem sínteses, sem
idealizações da mestiçagem, teorizada não sem um robusto componente de
anacronismo pela sochologa Silvia Rivera Cusicanqui.
Através dessas duas cenas barrocas contrastadas, apesar de
coincidentes em seus “objetos”, espero ter evidenciado dois modos do
latino-americano: um, que milita subterraneamente em prol de uma
alienação que, entretanto, declara combater;
14
e outro que, longe de
constituir um discurso de contestação a partir de imperativos categóricos
“universalistas”, prefere extrair potência política dos modos de vida de
coletividades e sujeitos tradicionalmente excluídos tanto da cidadania
quanto da arte.
15
IV. Ligando o desejo à realidade
Uma pergunta, à vista dessa exclusão histórica, aqui seria possível: “mas
como coadunar um pensamento dos limites, um pensamento que constata
catástrofes, com o afastamento da tristeza, da castração, da falta, enunciado
por Michel Foucault (1977) entre os princípios para uma vida não
fascista?”.
Essa pergunta poderia ser respondida, justamente, relembrando
Foucault: afastamos a tristeza, a castração e a falta quando ligamos o desejo
à realidade. Constatar que a catástrofe é o evento originário de América
Latina não é constatar uma falta, como fazem aqueles deficitaristas (em
ocasiões, áulicos involuntários da CEPAL) que pensam que somos lugar de
ideias fora de lugar ou o lugar de uma modernidade não cumprida, mas
entender que a catástrofe que evidenciam ficções como Pedro Páramo, ou
mesmo “Páramo”, é um corolário latino-americano da modernidade, e
nunca seu avesso. Comala é o que resta quando o redemoinho da
modernidade já passou.
14
"Os procedimentos da crítica social, com efeito, têm como objetivo curar os deficientes, aqueles que
não sabem ver, aqueles que não entendem o significado do que vêem, aqueles que não sabem
transformar o conhecimento adquirido em energia militante. E os médicos precisam desses pacientes
para curar. Para curar deficiências, eles precisam reproduzi-las indefinidamente.” (Rancière, 2014: s/p).
15
Em 1973, Juan José Saer fazia uma produtiva distinção entre os narradores que se idealizam no
pan-óptico da totalidade e aqueles que sabem se situar na complexidade vital que apresentam: “A
alienação [...] não está na literatura que a reflete, mas naquela que a escamoteia, não está na divisão
vivida como divisão, mas na divisão vivida como integridade. Não está em Macedonio Fernández que
teoriza, arduamente, a impossibilidade de narrar, mas em Vargas Llosa, que dedica trezentas páginas à
descrição da vida de um colégio militar, confundindo a crítica liberal de um aspecto da superestrutura
com uma crítica do real. É abrindo fendas na falsa totalidade, que não podendo ser mais que imaginária
não é outra coisa que alienação e ideologia, que a narrativa destruirá esse verniz convencional que
corriqueiramente se faz passar por realidade unívoca” (Saer, 1975: 170).
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Como muito bem foi exposto pelo Ruy Mauro Marini de Dialética da
Dependência (1973) a América Latina, longe de ser a periferia do capitalismo,
é uma de suas usinas, e a via teórica desenvolvimentista, com seu lastro
neoliberal de subimperialismo e superexploração do trabalho, é o caminho
de produção de mais dependência. Não a conjuração do mal, mas seu
exercício nos moldes de um pensamento pretensamente crítico.
Ligar o desejo à realidade é procurar a potência dessa América Latina
permanentemente desmontada nos modos de vida de coletividades e
sujeitos corriqueiramente excluídos como agentes relevantes nas nossas
elaborações teóricas. E dado que para que qualquer coisa seja compreendida
antes deve ser ficcionalizada, esses modos de vida não podem outra coisa
que se tornar cenas de vida estética, cenas de dissenso, ou constituições sensíveis
do coletivo.
16
Como antes disse, é deles e delas que podemos aprender a
sobrevivência, pois eles e elas são a vida que fervilha na nossa constante
catástrofe.
A filósofa argentina Luciana Cadahia, no livro Mediaciones de lo sensible:
hacia una nueva economía crítica de los dispositivos (2017), oferece, a meu ver, uma
alternativa teórica à compreensão apocalíptica do dispositivo estatal como
aquilo que exclusivamente “captura a vida nua”. Se consideramos o
“Estado” como um dispositivo, para nele ver, para além da captura, linhas
de fuga e de subjetivação, também deveremos, de acordo com Cadahia,
discutir de novo o nosso conceito de democracia: se a democracia é um
modelo formal e abstrato, o papel do político passa às mãos do gestor ou
do administrador, excluindo desse modo a política; mas se a democracia é,
de fato, exercício político, é possível entendê-la de outra maneira:
[Temos a experiência] dos chamados populismos progressistas latino-
americanos. Não negamos que a lógica neoliberal também esteve presente
neles, mas nos parece que essa experiência democrática permitiu questionar
essa lógica. Principalmente porque ao visibilizar as tensões internas da
sociedade, mostrou a dimensão política que subjaz nas diferentes formas de
vida que estão em jogo. Por isso, comemorar sem questionamentos o fim da
forma-partido [...] pode ser funcional ao capitalismo financeiro atual, capaz
de dar golpes de estado encobertos (assim como aconteceu com a
substituição dos políticos por “gestores eficientes” na Europa, ou com o
uso do mecanismo jurídico para destituir presidentes eleitos popularmente
na América Latina). [...] É provável que o desafio atual não consista
exclusivamente em pensar os estados de exceção que existem na maquinaria
do Estado, mas em que medida a reapropriação do Estado entendido
16
“Entendemos por tal constituição [estética/sensível] a comunidade como modo de ocupar um lugar
e um tempo, como o corpo em ato oposto ao simples aparato das leis, um conjunto de percepções,
gestos e atitudes que precede e pré-forma às leis e instituições políticas”. (RANCIÈRE, 2014, s/p)
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como um espaço poroso, heterogêneo e contingente pode funcionar como
um dispositivo de resistência ao capitalismo financeiro. Se essa resistência não se
gesta a partir de um vínculo estratégico entre a mobilização popular e o
Estado, mediados por democracia, tudo trabalha para a vitória de uma das
combinações mais perversas da nossa história: liberalismo selvagem na
economia e conservadorismo feroz no social. (Cadahia, 2017: 239-241)
Acredito que Cadahia, nesse trecho diz algo de enorme relevância para o
exercício crítico latino-americano nos dias atuais: uma verdadeira
experiência democrática permite visibilizar, dizer e pensar as tensões
inerentes a uma sociedade articulada em diversas formas de vida. Ou seja, a
evidência, o dar a ver, das formas de vida é um exercício político, um modo
de ligar o desejo à realidade, e isso não exclui quem se dedica à crítica
literária.
Um dos eventos que se constatou de modo mais significativo no
chamado “ciclo populista” é a entrada no campo da crítica universitária de
atores sociais atavicamente excluídos desse universo. Esse universo, como
constata Jessé de Souza (2019), esteve constituído tradicionalmente por
uma classe média que legitimava os valores e privilégios da elite real, dos
reais donos do capital uma classe média vira-lata, que considerou sempre
que a política era “suja” por subdesenvolvida, e que essa sujeira deveria se
“limpar”... Se o campo dos estudos literários mudou, se hoje temos no
campo gente “de extração popular”, porque não mudar os modelos
classistas da crítica literária? Consideremos que, inclusive, essa “invasão” do
campo por gente que não parecia destinada a ele foi avaliada por grande
parte dos tradicionais agentes desse campo como uma “decadência”,
17
consideremos que os dois primeiros ministros da educação do governo de
Bolsonaro, ambos designados por Olavo de Carvalho, partem do
pressuposto de que a universidade deveria ser um lugar de elite,
consideremos que em grande medida o sucesso nesse campo é possibilitado
por uma negação envergonhada da origem popular, e até por uma sensação
permanente de ser um rastaqüera, um “bom para nada”, um farsante algo
que levaria Mark Fisher, também conhecido como K-punk, um intelectual
formado no welfare state inglês, mas que “amadureceu” em pleno desastre
neoliberal, a uma profunda depressão, mas também a uma reivindicação do
ressentimento como potência:
Um ressentimento que induzisse o escravo a se levantar e superar seu amo
não pertenceria mais à moral escrava. [...] O ressentimento é um afeto muito
17
“A superação dos conceitos de ‘progresso’ e de ‘época de decadência’ são apenas dois lados de uma
mesma coisa”. (Benjamin, 2006: [N, 2, 5], 503)
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Número 8 / Julio 2020/ pp. 111-135 132 ISSN 2422-5932
mais marxista que o ciúme ou que a inveja. A diferença entre ter
ressentimento da classe dominante e invejá-la é que o ciúme traz implícito
um desejo por se tornar parte da classe dominante, enquanto o
ressentimento sugere uma fúria contra sua posse de recursos e privilégios.
Um ressentimento que levasse somente à inação queixosa é, com certeza, a
própria definição de uma paixão inútil. [...] O ressentimento contra o
privilégio e contra a injustiça é, em muitos casos, o primeiro passo na
direção da confrontação dos próprios sentimentos de inferioridade,
muito tidos por naturais e introjetados desde cedo. […] Ressentimento
versus desprezo e condescendência. Ressentimento e constatação da própria
raiva: o começo da resistência contra a positividade compulsória do
realismo capitalista (Fisher, 2018: 274-277).
Depois dessas considerações –e propondo através desse “ressentimento”
uma volta de parafuso classista à “hermenêutica da inimizade” proposta por
Andermann e suplementada pelo pensamento-limite anteliano, cabe uma
alternativa: politizar o campo como proliferação de cenas estéticas ou
estetizá-lo como política de neutralização dos afetos e das singularidades. A
proliferação é sempre festiva, como pode ser festiva uma ira politizada: o
movimento é, e sempre foi, afinal, uma das formas da alegria.
Byron, “Para uma sobrevivencia Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 8 / Julio 2020/ pp. 111-135 133 ISSN 2422-5932
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