Marques, “Cartas entre escritores…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 14 / Julio 2023 / pp. 76-100 76 ISSN 2422-5932
CARTAS ENTRE
ESCRITORES: ENCENAÇÕES DO ARQUIVO
LETTERS BETWEEN WRITERS:
ARCHIVES PERFORMANCES
Reinaldo Marques
Universidade Federal de Minas Gerais / Belo Horizonte, Brasil
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico / CNPq
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (1993), é Professor
Associado IV da Faculdade de Letras da UFMG. Integra a equipe de pesquisadores do Acervo de Escritores
Mineiros da UFMG, sob a responsabilidade do Centro de Estudos Literários e Culturais, do qual foi diretor
nos períodos de 1997-2001 e 2008-2012. Pesquisador do CNPq, foi presidente da Associação Brasileira de
Literatura Comparada no biênio 2000-2002. Publicou os livros Arquivos literários: teorias, histórias,
desafios (2015) e, em coautoria, Indicionário do contemporâneo (2018). Coorganizou a edição de
Henriqueta Lisboa: obra completa (2020). Também coorganizou e colaborou com as obras Limiares
críticos: ensaios de literatura comparada (1998), Valores: arte, mercado, política (2002) e
Modernidades alternativas na América Latina (2009).
Contacto: reinaldomarques28@gmail.com
ORCID: 0000-0002-6756-093X
DOI: https://zenodo.org/record/8212581
D
OSSIER
Archivos latinoamericanos
Marques, “Cartas entre escritores…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 14 / Julio 2023 / pp. 76-100 77 ISSN 2422-5932
Fecha de envío: 01/04/2023 Fecha de aceptación: 15/05/2023
Escritores
Correspondência
Arquivos
Cultura Digital
Encenações
No contexto contemporâneo marcado pela predominância dos arquivos digitais, o presente ensaio se
dedica a pensar a montagem dos arquivos pessoais de escritores no âmbito ainda do modernismo
literário. Para tanto, toma como objeto de reflexão e questionamento o papel das cartas trocadas entre
eles para a constituição desses arquivos. Reflexão que se atualiza a partir de dois movimentos. De um
lado, procura examinar o ingresso da carta no arquivo, isto é: a operação de mise en archive das
correspondências dos escritores nos arquivos pessoais e literários segundo princípios arquivísticos. De
outro, se detém nas referências ao arquivo presentes nas cartas, vale dizer: como na escrita de cartas os
escritores encenam o arquivo, a montagem de seu arquivo pessoal, figurando-se como arcontes de sua
memória. De sorte que, em certa medida, suas cartas podem se constituir em ficções do arquivo. Como
demonstração da pertinência dessas considerações, são extraídos exemplos especialmente da
correspondência trocada entre dois poetas mineiros, Abgar Renault e Carlos Drummond de Andrade.
Examinar os processos de constituição dos arquivos dos escritores no contexto ainda moderno pode nos
ajudar a entender melhor os desafios que os arquivos digitais colocam hoje para a formação desses
arquivos e o campo dos estudos literários.
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE
Writers
Letters
Archives
Digital culture
Teachings
In the contemporary context marked by the predominance of digital archives, this essay is dedicated
to thinking about the assembly of writers' personal archives in the context of literary modernism. To
this end, it takes as an object of reflection and questioning the role of the letters exchanged between
them for the constitution of these archives. Reflection that is updated from two movements. On the
one hand, it seeks to examine the entry of the letter into the archive, that is, the operation of mise
en archive of the writers' correspondence in the personal and literary archives according to archival
principles. On the other hand, it dwells on the references to the archive present in the letters, that is
to say: how in letters writing the writers put on stage the archive, the montage of their personal archive,
figuring themselves as archons of their memory. So that, to a certain extent, their letters may constitute
fictions of the archive. As a demonstration of the relevance of these considerations, examples are
drawn especially from the correspondence exchanged between two poets from Minas Gerais, Abgar
Renault and Carlos Drummond de Andrade. Examining the processes of constitution of writers'
archives in the still modern context can help us better understand the challenges that digital archives
pose today for the formation of these archives and the field of literary studies.
ABSTRACT
KEYWORDS
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Número 14 / Julio 2023 / pp. 76-100 78 ISSN 2422-5932
Eu gosto muito de meu escritório, meus papéis, arrumar meus arquivos,
tenho um papelório grande, grande que me acompanha pela vida afora.
Carlos Drummond de Andrade (1981)
Como indicia a epígrafe acima, o gosto do escritor ou da escritora pelo seu
escritório, revelado pelo poeta itabirano em entrevista a uma repórter de
televisão, não indicia apenas uma íntima convivência entre o sujeito e o
espaço onde se realiza o trabalho da escrita. Aponta também para a estreita
relação entre o escritor e seu arquivo, que costuma ocupar um lugar singular
na economia da casa, no espaço doméstico. Parece revelar ainda que arrumar
os papéis no arquivo, colocando ordem no “papelório”, constitui tarefa
necessária para se exercer o ofício de escritor. Entre o papelório que
acompanha o escritor pela vida afora podemos localizar certamente os
documentos relativos à sua correspondência com outros pares. Disso dá
testemunho a já volumosa publicação de cartas trocadas entre escritores e
escritoras mundo afora. Entre nós, essa publicização das cartas dos escritores
tem sido incrementada pela constituição de arquivos literários junto a
instituições de guarda tanto públicas quanto privadas, especialmente as
universidades, para onde costuma se deslocar o arquivo pessoal do escritor
ou escritora após sua morte.
Trata-se de um complexo movimento de desterritorialização e
reterritorialização, por meio do qual o arquivo pessoal de um escritor é
domiciliado em outro endereço, movendo-se do espaço privado para o
espaço público. Essa operação acarreta drásticas consequências topológicas
e nomológicas, ao submeter um arquivo pessoal ao crivo de saberes
especializados –arquivologia, biblioteconomia, museologia e aos cuidados
de novos arcontes: arquivistas, bibliotecários, museólogos, pesquisadores.
Dessa maneira, ao se inscrever num espaço liminar situado entre o público e
o privado, o arquivo pessoal do escritor transforma-se num arquivo literário.
Já não é mais um arquivo privado, nem é de todo um arquivo público,
constituindo-se num espaço crispado por tensões que com frequência
costuma surpreender os pesquisadores.1
Disponibilizado para usufruto do público em geral, mas
particularmente de pesquisadores acadêmicos, os materiais heterogêneos dos
arquivos literários incluem livros, periódicos, documentos pessoais,
correspondência, originais manuscritos e datiloscritos de suas obras,
1 A respeito dessa conversão do arquivo pessoal do escritor num arquivo literário e de suas implicações,
confira-se meu ensaio “Arquivos literários, entre o público e o privado” (2015).
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fotografias, coleção de objetos pessoais e obras de arte, que fazem deles um
híbrido de biblioteca, arquivo e museu. Entre os seus documentos, as cartas
constituem um volume significativo da documentação, merecendo uma
maior atenção por parte dos especialistas. Com efeito, a troca de cartas entre
escritores mostra-se hábito generalizado que costuma atravessar décadas,
segundo ritmos variados, compondo parte significativa dos fundos
documentais de seus arquivos. É o caso, por exemplo, da correspondência
trocada entre os escritores mineiros Abgar Renault (1901-1995) e Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987), que se inicia na década de 1920 e vai
até a década de 1980. Provavelmente pensa Drummond também nas cartas
de Abgar ao mencionar aquele “papelório grande, grande que me acompanha
pela vida afora”. Essa longevidade da troca epistolar pode ser bem
testemunhada em muitos outros escritores, tendo em Mário de Andrade seu
grande expoente. Frente a uma tal compulsão epistolar, marcada pela lógica
da repetição e duração dilatada, cabe levantar algumas indagações: O que leva
os escritores a esse exercício quase que interminável do diálogo epistolar
entre eles? A que necessidades, de natureza tanto subjetiva quanto objetiva,
a troca de missivas parece satisfazer? Que funções, entre o segredo e o
secreto, a confidencialidade e a publicidade, cumpre a carta remetida de um
a outro?
Os inúmeros estudos dedicados hoje em dia à correspondência dos
escritores e escritoras já fornecem algumas respostas. Sabemos que as cartas
são dotadas de uma caracterização mínima, visível na indicação do
destinatário e na aposição da assinatura. Possuem uma estrutura comum
formada por um exórdio, uma narração ou exposição e uma conclusão. Mas
isso definitivamente não confere a elas um ar sisudo e inflexível; ao contrário,
as cartas conformam um gênero bastante maleável, híbrido, conforme
demonstram seus vários usos e trânsitos: familiar, protocolar, comercial,
ficcional. Maleabilidade que lhes dão o direito de travestir-se sem pudor do
bilhete e do cartão-postal, circular entre o privado e o público, o discurso
pragmático e o discurso literário, embaralhando fronteiras discursivas, de
gêneros, não sem semear dúvidas, inquietações (Cf. Harouche-Bouzinac,
2016).
Em seus múltiplos usos, sobretudo no âmbito privado, as cartas
procuram suprir a ausência dos interlocutores; simulando a presença deles,
mantêm vivo o diálogo. Servem para mitigar a solidão, expressar a dor da
separação, alimentar as amizades, ou fomentar mal-entendidos, desavenças e,
até mesmo, acirrar ódios. No tocante ao ofício do escrever, a
correspondência entre escritores cumpre funções variadas. No diálogo
epistolar entre escritores, as cartas costumam funcionar como laboratório
revelador de mecanismos de composição textual e espaços de
experimentação vocabular, linguística; ajudam a explicitar circunstâncias,
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ambientes e motivações dos textos. Podem revestir-se de uma função
pedagógica, em que um escritor experiente orienta um escritor mais jovem,
por meio de valiosos comentários críticos. Ao esclarecer passagens de sua
vida, prestam-se também ao exercício de ficcionalização, possibilitando ao
escritor ver-se como personagem em meio aos seus personagens (Cf. Moraes,
“Afinidades eletivas”, 2000). Disso decorre o enorme aproveitamento da
correspondência dos escritores pelas críticas biográfica, genética e textual. No
entanto, pretendo aqui chamar a atenção para uma função oblíqua exercida
pela troca de cartas pelos escritores. Minha hipótese é a de que elas
funcionam como instância de constituição de seus arquivos, posto que
servem frequentemente para enviar textos, livros, recortes de jornais e
periódicos, documentos, informações sobre obras e revistas publicadas,
solicitar empréstimos de livros e devolvê-los.
Desse modo, pretendo realizar um duplo movimento investigativo, de
teor mais especulativo que prático. De um lado, pensar a carta no arquivo,
isto é: a operação de mise en archive das correspondências dos escritores nos
arquivos pessoais e literários, ao colocá-las em arranjos que evidenciam a
serialidade, a contiguidade e a ordem, impactando-as tanto em termos
topológicos quanto nomológicos e agregando-lhes valor histórico, cultural,
literário. De outro, examinar o arquivo na carta, vale dizer: como na escrita
de cartas os escritores encenam o arquivo, a montagem de seu arquivo
pessoal, figurando-se como arcontes de sua memória. De sorte que, em certa
medida, suas cartas podem se constituir em ficções do arquivo.
Cabe esclarecer que me deterei em escritores cujos arquivos se
encontram alocados no Acervo de Escritores Mineiros da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), com os quais estou mais familiarizado.
Vale dizer: meu recorte privilegia escritores relacionados ao nosso período
modernista, cujos arquivos foram sendo formados ao longo do século XX.
Trata-se de arquivos modernos, constituídos sob a égide da letra e do suporte
papel o “papelório”, de acordo com os imperativos do grafocentrismo e o
dever de arquivar a própria vida. Bem distintos, portanto, dos arquivos
contemporâneos, impactados pelas tecnologias eletrônicas, a cultura digital,
em que a correspondência pessoal se faz pelo e-mail ou pelas redes sociais,
segundo uma lógica outra, tornando quase anacrônico o recurso à carta no
papel. Examinar os processos de constituição dos arquivos dos escritores e
escritoras no contexto latino-americano ainda moderno, grafocêntrico e
analógico, alocados especialmente em instituições públicas e privadas, pode
nos ajudar a entender melhor os desafios que os arquivos digitais colocam
hoje para a formação dos arquivos literários e o campo dos estudos da
literatura e da cultura.
A carta entra no arquivo
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O primeiro documento da correspondência entre Abgar Renault e Carlos
Drummond2 é um telegrama de cumprimentos enviado por Abgar a Carlos
e sua senhora, desejando-lhes felicidades. O carimbo dos Correios um tanto
apagado deixa legível apenas o dia do envio, 31. Provavelmente trata-se de
cumprimentos pelo casamento de Drummond e Dolores, ocorrido em
31/05/1925. Com ajuda da imaginação podemos recriar a cena do provável
gesto inaugural de um arquivo pessoal, realizado no recôndito da casa. Após
a leitura de mais um telegrama de cumprimentos entre outros, os olhos se
levantam e miram o cesto de lixo próximo à escrivaninha, para onde todos
os papéis parecem se mover. Mas a tentação do descarte é vencida pela pulsão
do arquivo. O telegrama vai parar numa gaveta, ou pasta, preservado como
rastro de um acontecimento. Um gesto de detenção: deter o fluxo do tempo
que condena todas as coisas à dispersão, ao desaparecimento. Mas também
um gesto de retenção, de reter o vestígio de um evento, motivado, quem sabe,
pela promessa de uma profícua vida de amizade e cumplicidades entre dois
jovens candidatos a poeta na provinciana Belo Horizonte da década de 1920.
Cumplicidades que serão não apenas existenciais, mas também políticas,
intelectuais e literárias; sobretudo cumplicidades impulsionadas pelo arquivo,
no arquivo, com o arquivo. Afinal, no arquivo há uma promessa de futuro e,
muitos anos depois, Drummond dirá a Abgar, em carta de 26/04/1972, que
tem “a mania do arquivo no sangue”.3
Isolado em si mesmo, como pura singularidade, esse documento teria
sido preservado por um gesto anódino, puramente mecânico. No entanto, os
novos envios vão sendo retidos e as novas cartas guardadas juntamente com
as anteriores. Ao proceder assim, de modo às vezes intuitivo, o escritor
instaura uma série, a de sua correspondência, e é dentro dessa serialidade que
suas cartas podem despertar interesse, mobilizar a atenção dos estudiosos. É
que o gesto arquivístico agrega aos documentos valor, sentidos; há nele uma
intencionalidade e nunca é um gesto bobo, inocente. Organizadas numa série,
o arquivo pessoal já provê as cartas de um contexto, colocando-as em diálogo
com outros textos. Enquanto contexto da correspondência dos escritores,
um contexto discursivo, o arquivo funciona como elemento de estabilização
dos significados das cartas, orientando ou controlando o movimento assaz
ingovernável da suplementação de sentidos.
2 A correspondência entre Abgar Renault e Carlos Drummond de Andrade encontra-se depositada no
Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Cópias
xerográficas das cartas encontram-se no Acervo de Escritores Mineiros, obtidas em razão de pesquisa a
respeito da melancolia presente na poesia tanto de Abgar quanto de Drummond. Toda essa
correspondência já se encontra digitada para possível publicação e estamos empenhados na etapa de
elaboração das notas.
3 No já referido “Arquivos literários, entre o público e o privado”, tratei dessa mania do arquivo em
Drummond (Cf. Marques, 2015: 64).
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Exploremos um pouco mais aquele primeiro gesto drummondiano em
direção ao arquivo, examinando suas operações e desdobramentos. Diz-nos
Jacques Derrida que sem rastro não pode haver arquivo e que, em sua
estrutura, o rastro supõe corte, separação da experiência, do vivido, da
origem. Segundo seus termos, o rastro é “algo que parte de uma origem mas
que logo se separa da origem e resta como um rastro na medida em que se
separou do rastreamento, da origem rastreadora. É aí que há rastro e que há
começo de arquivo. Nem todo rastro é um arquivo, mas não há arquivo sem
rastro” (Derrida, 2012: 121). Nem todo rastro constitui um arquivo,
esclarece-nos ainda Derrida,
na medida em que o arquivo supõe não apenas um rastro, mas que o rastro
seja apropriado, controlado, organizado, politicamente sob controle. Não há
arquivos sem um poder de capitalização ou de monopólio, de quase
monopólio, de reunião de rastros estatutários e reconhecidos como rastros.
Dizendo de outra maneira, não há arquivos sem poder político. (130)
O arquivo começa, então, por um trabalho de apropriação de rastros, que
demanda operações de seleção e organização desses rastros, propositalmente
escolhidos para uma relativa sobrevivência. Inscritos no arquivo, os rastros
podem ser esquecidos, posto que contêm em si a possibilidade de serem
lembrados, uma lembrança diferida. Mas, visto que nem tudo pode ser
guardado e que é próprio do rastro poder ser destruído, o trabalho de seleção,
de preservar e de pôr em reserva no arquivo, implica, em contrapartida,
violência e morte. A seleção de determinados rastros acarreta o apagamento
de tantos outros. A pulsão de morte incrusta-se no coração do arquivo,
submetendo-o a inúmeras relações de força, à dialética da memória e do
esquecimento. Grande é, pois, o poder dos arcontes do arquivo.
Ora, ao livrar aquele telegrama do descarte, da boca voraz do cesto de
lixo, do tempo, por um procedimento seletivo afinal, tantos outros
telegramas ou cartas do mesmo teor não foram guardados, o gesto
arquivístico do jovem Drummond opera um corte por meio do qual algo que
procede dele, diz respeito a ele, a suas experiências, separa-se dele, torna-se
independente dele, obliterando a origem. Assim separado, sob a forma de um
documento de arquivo, o telegrama resta como um rastro, vestígio
desontologizado de algo ocorrido. Todavia, jungido à serialidade, cada
documento da correspondência se coloca como passagem entre o passado, o
de sua escrita e envio, e o futuro, o de sua recepção pelo destinatário, ocorrida
tempos depois, segundo os ritmos e dramas ditados pela tecnologia postal.
No aqui e agora da carta no arquivo, seu presente, pode-se dizer que
coexistem camadas heterogêneas de tempos, encenando a defasagem própria
do diálogo epistolar. Mas ao reter o envio, abrigando a carta em seu arquivo,
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não estaria o escritor condenando-a ao extravio, rasurando a destinação, e
abrindo-a ao jogo infindável da significação? Não seria um tanto paradoxal
esse gesto de arquivar a carta, ao dar-lhe um contexto capaz de resguardar
seu sentido primeiro, mas ao mesmo tempo destiná-la à perquirição e
interpretação de outros olhares e subjetividades no porvir, como estamos
aqui a fazê-lo?
Ao se indagar sobre o estatuto do envio postal, do endereçamento,
observa o mesmo Derrida que signatários e destinatários nem sempre são
visíveis e idênticos de um envio a outro, não se confundindo inevitavelmente
os primeiros com os expedidores, nem os segundos com os receptores ou
leitores. Presta-se assim o envio postal às artimanhas das falsificações e
ficções, do jogo de pseudônimos, homônimos e anônimos, esmaecido pela
aposição de uma assinatura que assume o envio. Adverte-nos ainda o filósofo
de que, sujeita ao desvio e ao extravio, “uma carta sempre pode não chegar
ao destino, e que, portanto, ela nunca chega” (Derrida, 2007: 42). Daí, em
“Envios”, falar ele de uma “tragédia da destinação”, na medida em que tudo
se torna cartão-postal, isto é, legível para outros, ainda que incompreensível
(30). Nesse ponto, ao preferir o cartão-postal à carta, Derrida tem em vista a
abertura do sentido, sua disseminação e, por conseguinte, a legibilidade, que
é restringida pelo endereçamento.
Ao colecionar as cartas com seus pares, o escritor as seleciona entre
tantas outras e as preserva em seu arquivo; mas também as põe em reserva
para si, para seu uso. Há nesse procedimento de seleção uma
intencionalidade, um artifício, que institui o escritor como guardião de suas
memórias. Ao assim proceder, contudo, o escritor suspende, rasura o
endereçamento e efetua um reenvio para o futuro, para um qualquer de seus
leitores no porvir, amadores ou especialistas. Para outros usuários e usos do
arquivo. Em sua destinerrância,4 tendo em vista a iterabilidade própria de todo
signo, traço ou marca, essas cartas poderão ser lidas em outros tempos e
contextos, à revelia das intenções de seus emissores e destinatários,
potencializando a legibilidade. Como um cartão-postal aberto a qualquer
olhar. Para isso, haverá de contribuir a passagem do arquivo pessoal do
escritor da cena privada para a cena pública, sua metamorfose no arquivo
literário.
Como qualquer um, ao arquivar seus papéis, o escritor responde a uma
coerção social: especialmente nas sociedades ocidentais onde a presença da
escrita é predominante, os indivíduos são coagidos a arquivar suas vidas por
4 Jogo aqui com o conceito derridiano de destinerrance. Trata-se antes de uma figura espaço-temporal para
o tempo que propriamente de um conceito, disseminada pela obra do filósofo francês e relacionada à
repetição do signo, mais particularmente a enunciados performativos. A respeito, conferir o ensaio
“Derrida’s Destinnerance” (2006) de J. Hillis Miller.
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meio de inúmeros registros escritos, a fim de garantir sua identidade, a
existência frente ao poder público, ao Estado, e ter acesso a direitos. Na
montagem de seu arquivo, já observei que
os escritores mostram-se bastante conscientes das implicações que isso
acarreta para sua imagem pública. Tanto que recorrem a variadas práticas de
arquivamento de si. Além de arquivar papéis e documentos de trabalho em
pastas, gavetas ou armários, montar álbuns de fotografia, também se valem
de formas mais sofisticadas de arquivamento de si: a prática da
correspondência, a escrita de autobiografias e de memórias. Para tanto,
realizam diversas operações intelectuais e manuais: analisar, selecionar, fazer
triagem, manipular, omitir, sublinhar, rasurar, riscar, recortar etc. Operações
em que se sobressaem, a um só passo, uma intencionalidade particular, o
gesto seletivo e classificatório. E para cuja execução não falta às vezes o
auxílio de membros da família, ou até mesmo a interferência deles na seleção
do que guardar. Juntamente com seus livros, os escritores costumam guardar
ao longo do tempo materiais diversos –cadernos de notas, rascunhos,
originais de seus livros, recortes de jornais e revistas, cartas, fotografias,
documentos pessoais, contratos com editoras, coleções de objetos e obras de
arte. E o fazem seja em razão de um projeto de escrita de novo livro, seja por
desempenhar uma função pública, seja ainda por mero hobby– o prazer lúdico
de colecionar: chaveiros, cartões postais, obras variadas de artesanato
(Marques, 2015: 59-60).
Se todo escritor é intimado a montar um arquivo pessoal, não será
despropositado dizer que, no caso dos escritores mineiros, o hábito de
arquivar papéis, documentos, objetos vários, organizando-os segundo uma
ordem particular, parece um traço atávico, como se pode ver no arquivo de
um Murilo Rubião, um Oswaldo França Júnior, por exemplo. Trata-se de
uma “mania”, impulso incontrolável para repetir ações de arquivamento,
beirando às vezes a excentricidade, a monomania. Essa compulsão
arquivística entre nossos escritores modernistas provavelmente tenha sido
aguçada pelo fato de muitos deles terem sido funcionários públicos durante
boa parte de suas vidas. Casos de Drummond, Abgar Renault, Murilo Rubião,
Henriqueta Lisboa, todos eles bastante atacados pela mania do arquivo5. A
convivência mais íntima com a burocracia governamental logo fê-los
5 Entre tantas outras funções e cargos no serviço público, Drummond foi secretário do Ministro Gustavo
Capanema no Ministério da Educação e Saúde. Abgar foi secretário de Educação dos governadores
Milton Campos e Bias Fortes em Minas Gerais, ministro da Educação de Nereu Ramos em nível federal,
além de membro do Tribunal de Contas da União. Já Rubião foi diretor da Imprensa Oficial do Estado
de Minas Gerais, ocasião em que foi responsável pela criação do Suplemento Literário do Minas Gerais.
Henriqueta exerceu o cargo de Inspetora Federal de Ensino do Ministério da Educação durante muitos
anos, pelo qual se aposentou.
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compreender que informação é poder e que o Estado se erige como campo
informacional, donde a importância dos arquivos públicos, com suas
operações cotidianas de arquivamento, de gestão e controle da informação,
levando a uma equivocada concepção do arquivo como algo natural,
orgânico. Desvendou-lhes o poder dos arquivos, de seus diversos usos e
abusos, ressaltando ora suas carências, estimuladoras de alucinações, ora seus
excessos, indutores de dogmatismos. Como meios de provar e defender
direitos, de identificar e acusar, de lembrar e compreender. Especialmente,
de produzir e preservar o passado, a memória, identidades pessoais e
coletivas, aguçando o tão moderno impulso de pertencimento. Não lhes
escapou ainda a lógica paradoxal do arquivo, que se presta a proteger e a
controlar, a preservar e a reservar, a regular e também a reprimir. Integrantes
de uma geração de intelectuais públicos, que se aventuraram na tentativa de
articular a ação cultural com a práxis política, comprometendo-se com a
modernização do Brasil em contextos autoritários, esses escritores
habituaram-se a guardar e ordenar em pastas e caixas documentos vários,
para futuros usos, comprovações, explicações ou álibis.
Em sua passagem do privado para o público, na institucionalização dos
arquivos dos escritores, alocados agora em instituições de guarda, haverá de
se inscrever a lei, autorizando direitos e limites. Direitos dos cidadãos de
acesso aos arquivos literários, financiados por recursos públicos; direitos da
família, de propriedade, arrolados nos direitos autorais; direitos de editoras,
de publicação e reprodução; direitos do Estado, ao garantir a constituição de
arquivos privados e públicos, ao ordenar a preservação e conservação deles,
bem como regular o acesso a eles. Desse modo, heterogêneas e conflitantes
relações de forças haverão de coabitar no espaço dos arquivos literários:
forças da memória e da tradição em luta contra as forças do esquecimento;
forças organizadoras dos interesses da oikos, de herdeiros e representantes do
escritor, colidindo com as das instituições de guarda, da sociedade e do
Estado, plasmadoras do interesse público; forças retóricas e performáticas
em choque com o poder arcôntico das interpretações. Forças que haverão de
se materializar nos conflitos entre direitos, garantidos pela Carta
constitucional, como no caso do direito da sociedade à informação e do
direito do indivíduo à intimidade, privacidade.
Em decorrência de sua exteriorização na esfera pública, alocado em
novo endereço, intervêm no arquivo do escritor meticulosas operações e
procedimentos próprios de saberes especializados, a fim de garantir a
classificação e organização dos materiais do arquivo. Bibliotecários zelosos
providenciam a catalogação dos livros de sua biblioteca, inserindo-os em
bases de dados biblioteconômicas e compondo a série bibliográfica, não sem
descobrir cartas, bilhetes, cartões postais e recortes de jornais perdidos em
muitos livros. Com apoio de pesquisadores, curadores e museólogos criativos
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promovem exposições capazes de comunicar ao público a heterogeneidade
da documentação do arquivo literário, seus diferentes ambientes técnicos:
arquivo, biblioteca, museu. Exposições que agregam valor histórico, cultural
e estético à documentação, como no caso dos documentos que revelam os
bastidores da criação literária rascunhos e notas, originais manuscritos,
datiloscritos ou digitoscritos de suas obras, incluindo-se aqui especialmente
as cartas trocadas por escritores.
Por outro lado, após tomar conhecimento da documentação com seus
diversos dossiês, submetê-la a processos de triagem, aplicados arquivistas
formulam quadros de arranjo, por meio dos quais dispõem em séries e
subséries a variedade de documentos, segundo princípios gerais da
arquivística princípios de respeito aos fundos ou proveniência, da ordem
original. Procura-se assim dar conta do caráter heteróclito da documentação:
textual, sonora ou fonográfica, iconográfica, audiovisual, tridimensional ou
realia, a dos objetos. Agrupá-la em seções descritivas comuns: de identificação
(registro das configurações formais dos documentos), de contexto (registro das
circunstâncias de origem dos documentos), de notação (registro dos códigos
de endereçamento permitindo a localização dos documentos no acervo), das
informações complementares (registro de informações sobre condições de acesso,
estado de conservação, valor etc.). Com a contextualização, operação
fundamental do trabalho dos arquivistas, tem-se em vista garantir a
organicidade dos fundos, revelando-se a arquivística como “ciência dos
contextos e das relações”, de acordo com Angelika Menne-Haritz (Cf.
Menne-Haritz apud Camargo, Goulart, 2007: 53).
Todo esse afã arquivístico procura muitas vezes domar o caráter
peculiar dos arquivos pessoais, que os distinguem dos arquivos públicos: a
acumulação intermitente, marcada às vezes por longas pausas temporais, a
intencionalidade subjetiva, a proliferação de documentos muitas vezes
destituídos de metadados tudo que parece denunciar o caráter artificioso, de
algo fabricado, corrompendo a impessoalidade e naturalidade da acumulação
contínua e orgânica do arquivo público. Como resultado das complexas
operações do mise en archive, o caráter flexível e variado das cartas dos
escritores ganha um ar mais homogêneo. Ao serem colocadas num arranjo
arquivístico enquanto uma série entre outras, com suas subséries ativa,
passiva, as cartas são arranjadas em pastas ou caixas segundo uma ordem
cronológica, para o que contribuem uma folha timbrada, a anotação do local
e da data de cada envio, providenciando sua ancoragem no espaço e no
tempo, dados essenciais à recuperação do contexto de origem do documento.
Com isso, as cartas se relacionam entre si, armando um vasto diálogo
epistolar, e se afinam ainda com as séries bibliográfica, iconográfica, da
produção intelectual do titular ou de terceiros, dos objetos, dos recortes de
jornais.
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Número 14 / Julio 2023 / pp. 76-100 87 ISSN 2422-5932
Por meio do tratamento arquivístico, as cartas ingressam na ecologia do
arquivo literário, submetendo-se à ordem do arquivo. Uma ordem que
consiste em situar cada documento num lugar próprio, seja um lugar físico,
seja um lugar metodológico, no arranjo arquivístico, de modo a impedir que,
fora de seu lugar, ele se transforme em sujeira, ruído informacional. Uma
ordem que se quer natural e orgânica, mas que se mostra teimosamente
arbitrária, convencional. Uma ordem que é também um comando, um
princípio a reger a tarefa interpretativa dos arcontes. Ordenadas no arquivo,
as cartas são postas em relação, providas de contextos discursivos, de uma
arquitetura de textos capaz de as conectarem com a “origem rastreadora”, de
assegurar sentidos autorizados, legitimados, estabilizando-os a serviço da
evidência histórica. Se o arquivo pode ser pensado tanto como um lugar
físico, um espaço institucional, quanto como um lugar imaginário, um espaço
conceitual mobilizador de imagens, de figuras do arquivo a biblioteca, o
museu, a coleção etc., aqui podemos aproximar o arquivo de uma concepção
mais discursiva, como formulada por Michel Foucault em A arqueologia do
saber. Longe de ser a totalidade de todos os textos guardados por uma cultura
como documentos de seu passado, ou mesmo as instituições encarregadas de
registrar e conservar os discursos que devem ser lembrados e se ter à
disposição, para Foucault o arquivo diz respeito a um sistema de
discursividade, de enunciabilidade e seu modo de funcionamento. O arquivo
consiste na “lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos
enunciados como acontecimentos singulares” (Foucault, 1987: 149). E, posto
que estamos e falamos de dentro dele, o arquivo não pode ser descrito a não
ser de modo fragmentário, impossibilitando sua totalização.
Ironicamente, contudo, ronda esse mundo meticulosamente
organizado do arquivo o espectro da desordem por conta do próprio trabalho
dos arquivistas, ao disponibilizar a documentação contida no arquivo aos
diversos usuários, do presente e do futuro. O apreço à ordem e à apropriação
política e monopolizada dos arquivos, postos a serviço de regimes discursivos
da verdade, permite compreender o fato de que o pensamento de Derrida
tenha encontrado pouca receptividade na comunidade dos arquivistas. Em
artigo esclarecedor, Brien Brothman atribui isso a algumas razões: o estilo
mais difícil ou hermético da escrita derridiana, a influência crescente nas
práticas arquivísticas de visada mais pragmática da gestão informacional.6 De
modo particular, essa impermeabilidade da arquivística às interpelações do
“mal de arquivo” derridiano reside na aproximação metafórica entre escrita
e arquivo operada pelo filósofo, submetendo este último ao pensamento da
6 Conferir, a popósito, o artigo de Brothman intitulado “Declining Derrida: Integrity, Tensegrity, and
the Preservation of Archives from Deconstruction” (1999).
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différance. Ou seja, à ideia de que as palavras não passam de traços destituídos
de essência, cujas inscrição e repetição na cadeia significante estão sempre
adiando a chegada de um significado último, o fechamento do sentido,
tornando interminável a tarefa interpretativa. O que, transposto para o
arquivo, implica dizer que os documentos a exemplo das cartas dos
escritores, desvinculados da origem e destituídos de significados essenciais,
são presas também do movimento interminável da interpretação, da
suplementação dos sentidos.
Diante disso, ao lidar com a correspondência dos escritores nos
arquivos literários, proponho que os pesquisadores atuem como anarquivistas,
uma mescla paradoxal de arquivista e anarquista, segundo um registro
inspirado na genealogia nietzscheana. Assim, desconfiado da solenidade das
origens e do caráter arbitrário de toda ordem, sejam eles capazes de ler o
arquivo a contrapelo, lendo as cartas segundo outras ordens, ou desordens,
possíveis, articulando relações outras e imprevistas entre elas e as demais
séries do arquivo. De modo a desestabilizar os sentidos dados e promover
novos olhares e interpretações da nossa vida literária e cultural. Para tanto,
ao ingressar no arquivo literário, o pesquisador anarquivista deve estar atento
aos procedimentos do mise en archive, ao poder de seus arcontes, percebendo
o arquivo não como algo dado, natural, mas como algo fabricado, construído
segundo múltiplas intencionalidades e procedimentos. Ciente de que as
operações de arquivamento agregam valor e significados aos documentos, à
memória histórica, literária e cultural.
O arquivo encenado na carta
Uma tentativa de explicação do exercício da prática epistolar entre escritores,
muitas vezes de modo duradouro, nos levará certamente às particularidades
do contrato epistolar. Como observa Geneviève Haroche-Bouzinac,
importam aqui a escolha do destinatário, a amizade, a regularidade dos
envios. Para Montaigne, um “destinatário forte e amigo” traduz o
endereçamento perfeito.7 Um tal endereçamento, bem se vê, pressupõe um
tipo ideal de destinatário, que nem sempre corresponde aos destinatários reais
e suas contingências históricas. Resistindo ao jogo retórico e de sedução
contido numa carta, esse interlocutor não deixa de responder a cada envio;
contudo, mostra-se à altura do diálogo proposto quando não hesita em
divergir ao emitir sua opinião, levando a que suas respostas sejam apreciadas
em vez de temidas. Conforme pontua Haroche-Bouzinac, ao não se anular
em suas respostas, ele atua como um alter ego do epistológrafo, que muitas
vezes incorpora a palavra do outro, sem deixar de retornar a si. Ademais, a
regularidade da troca de cartas intensifica o sentimento da amizade,
7 Conferir especialmente o capítulo “O destinatário ideal” em Haroche-Bouzinac (2016).
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produzindo a ilusão do diálogo, da presença, apesar da distância e efetiva
ausência dos corpos.
A leitura da correspondência entre nossos escritores modernistas revela
um vivo e intenso diálogo epistolar, muito cultivado entre eles. Certamente
que o projeto de uma vida literária alimentou essa troca de cartas adubada
por afinidades eletivas e mútuos sentimentos de amizade. No caso da
correspondência de muitos jovens intelectuais mineiros com Mário de
Andrade, sonharam encontrar aquele destinatário ideal, “forte e amigo”, na
figura do líder modernista. Mesmo entre eles, o desejo de um endereçamento
perfeito se insinua na correspondência de Otto Lara Resende e Fernando
Sabino com Murilo Rubião. Em carta de 30 de julho de 1957 enviada de
Madri, onde exerce funções diplomáticas à época, Murilo expressa a Otto sua
satisfação pelo envio: “A sua carta me encheu de alegria. Ela veio em uma
hora boa, justamente quando mais eu necessitava de uma carta amiga. Apesar
de fabulosa, Madri é tudo, menos Belo Horizonte”. Se a carta de Murilo frisa
o interlocutor amigo, uma carta de Fernando Sabino remetida de Nova York
em 01 de dezembro de 1946, sublinha o teor dos extravios e realça uma
cláusula pétrea da correspondência epistolar, a regularidade dos envios, cuja
desobediência afeta a boa imagem dos correspondentes. Diz Sabino:
“Escrevi a você há algum tempo e até hoje não recebi resposta. O medo de
se extraviar uma carta minha é duplicado, devido à minha reconhecida e um
tanto injusta reputação de mau epistológrafo. Diga-me se recebeu: ando
saudoso de você”.8 Nesse medo do extravio subsiste a preocupação com a
montagem de uma imagem de si com fortes lastros no imaginário alheio. A
fama de “mau epistológrafo” produz uma referência negativa de si capaz de
estancar, mais que o fluxo das cartas, o diálogo intelectual e amigo.
Isso porque o extravio adensa o silêncio, fonte de profundas
inquietações entre os missivistas ao colocar muitas pulgas atrás das orelhas.
O que ronda uma carta não respondida, ou extraviada? O silêncio pode
significar desinteresse, indiferença, rupturas. No caso de Abgar Renault, ele
se mostra profundamente incomodado com uma carta sua sem a devida
resposta do seu correspondente. Ressalta isso uma carta de Drummond a
Abgar, datada de 11 de novembro de 1946, em que vai direto à razão do grave
mal-estar entre os epistológrafos:
Soube que você anda magoado com o meu silêncio –e haveria razão para isso,
se tal silêncio não fosse apenas, como é, uma traição postal, que a mim me
aborreceu muito. Ora, sucede que já lhe escrevi duas cartas– não muito, é
8 A correspondência de Murilo Rubião encontra-se no arquivo do escritor, sob a guarda do Acervo de
Escritores Mineiros da UFMG. As passagens citadas foram retiradas de Cabral (2016: 173, 251).
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verdade, mas foram duas cartas longas, noticiosas e afetuosas, remetidas para
a Embaixada, e que é pena se tenham perdido, pois o extravio levou você a
supor que eu me houvesse desinteressado do nosso caro viajor. Aqui de
longe, continuo dedicando a você um contínuo e amistoso pensamento,
preocupado com a sua vida, os seus trabalhos, as suas preocupações. E de
resto, você sabe que eu tenho tão poucos amigos que não me posso dar ao
luxo de esquecê-los: a alma ficaria seca e erma, desprovida do seu melhor
alimento.
Mesmo quando em viagens ao exterior, Abgar não deixa de fazer seus envios
de cartas e cartões postais dando notícias de seu périplo por outros
continentes, sempre à espera da resposta do amigo, resposta sabotada às
vezes por extravios. Extravios, silêncio, traição postal: eis ocorrências graves
que ameaçam o bom convívio epistolar. Quando acontecem, no entanto,
podem se constituir em ocasiões propícias para se afirmarem e fortalecerem
os laços de amizade, como o faz aqui Drummond.
Quero levantar aqui uma outra suspeita para o mal-estar gerado pelo
silêncio epistolar entre os nossos escritores e epistológrafos mineiros. Além
da perda de amizades e o fim do estimulante diálogo intelectual, a interrupção
das práticas epistolares ameaça também a cumplicidade em torno do arquivo,
a formação do arquivo pessoal. As cartas evidenciam que as práticas de
arquivamento dos escritores são impulsionadas pela rede de relações de
amizade e afinidades literárias tecida pela sociabilidade intelectual. O escritor
costuma compartilhar com os colegas de ofício seus interesses e
procedimentos para a montagem de seu arquivo pessoal. Valendo-se do
serviço postal, por meio do envio de cartas, intercambiam entre si
documentos de seus arquivos: livros, revistas, cartas, fotografias, cópias dos
originais datiloscritos dos seus escritos, textos, informações de maneira geral.
Assim, um vai alimentando o arquivo do outro com novos materiais. Em
carta datada de 01/01/1927 e enviada do Rio de Janeiro, onde residia, Abgar
informa a Drummond, ainda morando em Belo Horizonte e trabalhando
como redator no Diário de Minas,9 o envio de um livro e o atualiza quanto às
novidades editoriais, chegadas ao então Distrito Federal:
Recebeste um bilhete meu, em que te dava aviso da remessa do livro do
Romains? O livro chegou? Gostaria muito que, se possível, me enviasses de
9 Cabe esclarecer que Drummond muda-se para o Rio de Janeiro, em 1934, ao assumir o posto de chefe
de gabinete do Ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, cargo que deixa em 1945.
Ele reside no Rio até sua morte em 1987. Já Abgar Renault reside ora em Belo Horizonte ora no Rio de
Janeiro, em razão de cargos ocupados seja no governo federal, seja no governo mineiro. Mas em 1971
passa a residir em definitivo no Rio de Janeiro, onde falece em 1995.
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vez em quando o Diário. (...) Há lindas cousas aqui, mas não sei se tens ou
não. Da Nouvelle Revue Française o Garnier recebeu as últimas novidades.
Em resposta datada de 13 de janeiro de 1927, escreve Drummond:
Afinal, Deus lhe pague o belo presente que me fez com o livro do Larbaud
(escolhi o Larbaud e dei o Cendrars, honestamente, ao Emílio). Gostei pra
burro dos versos dele.
O Romains, infelizmente, não recebi. Parece que no Correio tem alguém
querendo entender de metrificação. Vou dar um pulo lá com o seu recibo pra
ver se consigo tomar posse do Petit traité.10
Vê-se quanto um alimenta a biblioteca do outro, em meio aos sobressaltos
provocados pelo extravio postal. Pode-se dizer que o arquivo de Drummond
tem ascendência sobre seus correspondentes: funciona como espécie de
modelo, um arquivo catalizador, monopolizando demandas e envios. Já em
carta de 05/05/1932, remetida de Montes Claros, Cyro dos Anjos envia a
Drummond recortes de jornais com a repercussão da estada dele na cidade:
“Mando-lhe, junto, um outro recorte da Pátria. Transcreveram, na seção
social, o pequeno discurso [...] que você fez na Escola Normal. [...] Outro
recorte é da Gazeta, que transcreve sua entrevista sobre Montes Claros.”
(Miranda e Said, 2012: 52). Pode-se dizer que esse engajamento em torno da
montagem do arquivo pessoal constitui um traço marcante e comum a esses
escritores mineiros, compromisso mais intenso e coercitivo em uns do que
em outros.
Na correspondência entre Drummond e Abgar percebe-se mais
claramente o que está em jogo nessa faina de organização de um arquivo
pessoal. Eles mostram-se conscientes de que, na produção de uma obra
literária, a escrita dos textos depende de uma biblioteca bem fornida, da
organização de documentos e papéis anotações, rascunhos, originais
manuscritos ou datiloscritos, registros da publicação e recepção de seus
textos pela crítica em jornais e revistas devidamente recortados e organizados
em pastas. Tudo isso levando ao intercâmbio não apenas de informações
sobre o mundo e a vida literária, mas dos próprios documentos de seus
arquivos, compartilhando-os entre si. Em carta de 23 de abril de 1942, por
exemplo, o autor de A rosa do povo devolve a Abgar um empréstimo de muita
valia: “Aí vai o seu dicionário, que me foi de precioso auxílio na minha
aventura de tradutor. Acho que devo partir com os herdeiros do Domingos
10 Trata-se do Petit traité de versificacion de Jules Romains, escrito em colaboração com Georges
Chennevière e publicado em 1924. As passagens citadas referem-se ainda aos escritores Valéry Larbaud
e Blaise Cendrars, ao poeta mineiro Emílio Moura e também à filial da Livraria dos Irmãos Garnier no
Rio de Janeiro, onde se podia comprar exemplares da Nouvelle Revue Française.
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de Azevedo os lucros da tradução...” Trata-se do Grande Dicionário Francês-
Português, utilizado por Drummond provavelmente em seu trabalho de
tradução da obra Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac, publicada em 1943
sob o título de Uma gota de veneno.
São inúmeras e comuns entre eles cartas em que agradecem esse tipo
de préstimo, o compartilhamento do arquivo. Em missiva de 22 de setembro
de 1955, escreve Drummond: “Obrigado pelo artigo do Afonso Ávila que
você, leitor exemplar de jornais, e amigo mais exemplar ainda, me enviou”.
E, noutra passagem atualiza Abgar quanto a novidades bibliográficas: “Você
já tem a Bibliografia do Machado de Assis, por J. Galante de Sousa? Se não tem,
posso lhe arranjar.” O poeta de Itabira tem consciência de quanto o seu
arquivo se beneficia dos envios de Abgar, conforme declara em carta de 11
de dezembro de 1958. Abgar, de sua parte, reitera seu papel de municiador
do arquivo drummondiano, em carta de 19 março de 1959: “Mando-lhe mais
alguns recortes para o seu precioso arquivo. Constituem prova de que você
está presente sempre, até nos meus silêncios infames.” Vê-se aqui que, com
tais remessas, os correspondentes procuram mitigar as traições postais, os
silêncios, ao mesmo tempo em que afirmam a presença constante de um para
o outro mesmo em tais situações.
A correspondência entre escritores evidencia como a escrita de um
novo trabalho ou livro demanda pesquisa e recurso ao arquivo, levando o
escritor a recorrer muita vez ao arquivo do interlocutor amigo. É o que deixa
ver um trecho de carta de Drummond a Abgar, remetida do Rio de Janeiro
em 24 de outubro de 1955, em que se destaca a regularidade dos envios de
recortes e um pedido de empréstimo de materiais do arquivo do amigo. Cito
o trecho:
Obrigado mais uma vez pelos recortes (como você os manda sempre, cabe a
reiteração do agradecimento, que vêm enriquecendo os meus arquivos).
Você contou que possui uma coleção da “Vida de Minas”, e a par do desejo
de mergulhar no passado, cada vez mais fundo e constante em mim, fiquei
ainda curioso de procurar nela pseudônimos literários para o trabalho que
ando fazendo nas horas vagas. Não sei se será praticável você trazer ao Rio
os volumes, numa de suas viagens; um de cada vez, por exemplo. Eu folhearia
com o devido respeito pela propriedade e lhe restituiria isso logo depois.
Esse constante e profundo “desejo de mergulhar no passado” explicita bem
a causa do “mal de arquivo” tão peculiar aos escritores de Minas. Neles, essa
potente obsessão com o arquivo se articula sobretudo com a história de uma
Minas arcaica, como pré-condição para a compreensão tanto de si mesmos
como sujeitos e de sua identidade como escritores, quanto de uma Minas
moderna com a qual se confrontam. Uma história que não deixa de ser
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traumática, marcada por violações, espoliações e repressões, por
inconfidências e revoltas; por perdas não apenas de riquezas ouro,
diamantes, mas também de uma riqueza maior que ouro e diamante
metaforizam: a perda de si mesmos incrementada por diásporas e exílios
desses intelectuais na própria terra. História e perdas que vazam em suas
obras numa atmosfera de intensa melancolia. Por conta delas, em verso
lapidar de poema que se refere ao museu, uma figura central do arquivo, dirá
o poeta itabirano em “Museu da Inconfidência”, de Claro enigma: “Toda
história é remorso.” Trata-se de história que transpira certa sensação de culpa,
como remordedura que se repete no trabalho de montagem do arquivo
pessoal. Nesse sentido, servindo-me de sugestão de Sue McKemish (2013:
17-43), os arquivos dos escritores mineiros constituem não apenas “provas
de mim” como também “provas de nós”, articulando a identidade pessoal à
identidade coletiva.
Mais um exemplo elucidativo da importância seja do arquivo para a
escrita de um novo trabalho, seja da utilidade dos envios dos interlocutores
amigos, provendo o arquivo alheio de novos materiais, encontra-se em carta
de Drummond para Abgar, datada de 28 de março de 1966. No post-scriptum,
diz-lhe Drummond: “Sabe que seus recortes me têm sido muito úteis no
preparo de uma antologia da pedra no caminho? Estou preparando este
livreco, espécie de biografia do poema, com o auxílio de um rapaz português,
Arnaldo Saraiva, que veio ao Brasil com bolsa de estudos, e já escreveu a
introdução.” Com efeito, o amigo tem o hábito de recortar tudo que encontra
nos jornais referentes ao famoso poema “Uma pedra no meio do caminho”,
citações de seus versos, comentários a favor e contra, expedindo tudo para
Drummond. Como mostra carta de Abgar de 10 de maio de 1966, reveladora
de suas inclinações ideológicas: “Mandei-lhe mais um recorte sobre a pedra.
Recebeu? Era o nosso bravo General Costa e Silva a citar o verso famoso. Só
por isso tornei-me ainda mais favorável às eleições indiretas...” Em muito
contribuíram, pois, os envios arquivísticos de Abgar para a publicação do
volume Uma pedra no meio do caminho: biografia de um poema, em 1967, como
comemoração dos 40 anos de surgimento do polêmico texto. Envios que
merecem a devida atenção e a gratidão por parte de alguém profundamente
tocado pela compulsão do arquivo, alguém que, como Drummond, é um
“inveterado arquivista” (carta de 04/07/1973), empenhando em montar um
“arquivo implacável” (carta de 25/03/1963), a que nada escapa. Gratidão
explicitada eloquentemente numa correspondência de 18 junho de 1973
“Tenho recebido os recortes– quanta coisa que não escapa ao seu “olho
clínico” e à sua vigilante boa vontade! Agradeço-lhe muito o trabalho que
você toma com isto. E o meu arquivo se desvanece de ter em você um
fornecedor de alta categoria...”e noutra de 02 de julho de1975: “Seu serviço
cordial de recortes continua perfeito. Venho recebendo as notícias e os
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comentários como se eu fosse assinante do Lux-Jornal. E é, realmente, um
lux-jornal da amizade, esse que você mantém há tantos anos, em proveito do
meu arquivo literário. Obrigado, mais uma vez.”
Já morando no Rio desde 1934, Drummond também possui o hábito
de arquivar tudo que sai publicado a respeito de Abgar Renault ou de sua
autoria nos jornais cariocas. Essa prática arquivística comum a ambos revela
uma outra motivação para a constituição do arquivo pessoal do escritor. Ela
relaciona-se, entre nós, à profissionalização do escritor mediada pela
imprensa, no contexto dos meados do século passado. Se, de um lado, os
jornais são um importante espaço de publicação de seus poemas, à época,
conferindo visibilidade à obra e reconhecimento junto ao público leitor, de
outro, eles funcionam como instância de transição para a consolidação do
mercado editorial do livro e garantem aos escritores um valioso rendimento
extra, que vem se somar ao salário de funcionário público. Penso que está
por se fazer ainda um estudo mais apurado das relações dos nossos escritores
com a imprensa, vendo de que forma ela prepara o terreno e os treina para o
ingresso no mercado editorial com suas regras abstratas.11
Dotado de uma aguçada consciência profissional e de classe,
Drummond atua como uma espécie de procurador de Abgar, colocando
poemas do amigo nas páginas dos suplementos dos jornais cariocas e depois
cuidando de receber os “caraminguás” e remetê-los, via ordem bancária, ao
autor. A cobrança das colaborações depende de um arquivo bem-organizado.
É o que demonstra a seguinte passagem de uma carta de Drummond a Abgar,
de 26 maio de 1953:
O Diário [carioca] pagou os caraminguás devidos por duas colaborações:
“Canção oculta”, de 28.XII.1952, e “Para esquecer”, de 8.III.53. Por sinal que
anda agora mais generoso, e elevou de 300 a 500 cruzeiros a tarifa de poesia.
Em consequência do que, mando-lhe hoje pelo Banco Financial a
importância de 800 cruzeiros. Quanto aos poemas anteriores, o pagamento
deve ser feito por intermédio de um redator que até novembro do ano
passado cuidava do suplemento. Não o procurei, porque será mais prático
indicar-lhe a data de publicação dos dois trabalhos, e só tenho a do soneto
“Abril” (29.VI.1952); quando saiu o “Retorno de Pasárgada”? (Já vê você que
eu recorto todos os seus poemas e os guardo; ponho mesmo as datas
respectivas, mas no “Retorno” me esqueci disso). [...] Nunca publique nada
de graça, porque é um desaforo: jornais e revistas são empresas mercantis, e
11 Em pequeno ensaio intitulado “Poesia e mercado: o que dizem as cartas”, publicado no Suplemento
Literário do Minas Gerais, tratei um pouco dessas questões (Cf. Marques, 2007: 4-8). Publicados em 2021,
os três volumes de Imprensa, história e literatura: o jornalista-escritor, organizados por Isabel Lustosa e Rita
Olivieri-Godet (Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa) trazem valiosos estudos críticos sobre as relações
entre escritores e jornalismo que contribuem para suprir essa lacuna.
Marques, “Cartas entre escritores…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
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se aproveitam do nosso trabalho. Além disso, muitos escritores pobres
necessitam desses adminículos (como dizia o nosso caro Arduíno), e se não
cobrarmos pelo que publicamos eles terão dificuldade em fazê-lo. Não haverá
nisso mercantilização da inteligência e muito menos da poesia, porque o ato
da criação literária não ficará afetado. E ganhe seus cobrinhos suplementares,
que não são de todo despiciendos nesta era de arroz vendido nas joalherias.
O cuidado em arquivar tudo o que sai a respeito do outro na imprensa traduz
não apenas a estima mútua, mas também o zelo pelo colega de profissão,
cuidando de seus interesses materiais. Em carta enviada de Belo Horizonte
em 14 de junho de 1953, Abgar esclarece a dúvida e se comove com o
cuidado do amigo prestativo ao arquivar recortes de suas publicações: “O
‘Retorno de Pasárgada’ foi publicado no Diário Carioca a 21-9-52. (Fiquei na
maior comoção ao verificar que você tem os meus poemas recortados e
guardados! Diante disso para que publicar livro? É mais uma razão, e essa
definitiva.)” Aqui Abgar refere-se à insistência de Drummond para que ele
publique em livro seus poemas que saem nos jornais e nos quais o poeta de
Alguma poesia vê inúmeras qualidades. Por conta de seu “arquivo implacável”,
ele ameaçou Abgar algumas vezes de fazer uma edição dos poemas à revelia
do amigo.
A essa mesma correspondência, Abgar anexa um recorte de jornal com
a notícia do falecimento do conhecido ator de cinema mudo, William
Farnum, com o seguinte comentário: “Já que falamos, ambos com espanto,
no ano de 1923 (já houve mesmo isso?), junto este pequeno recorte para que
você chore comigo as sessões ‘Fox’ do cinema Odeon, em companhia do
Alberto, do Mário, às vezes do Milton e do Emílio. Triste coisa é a vida! (mas
ainda assim bela e apetecida!).” Além do ambiente cultural do momento, essa
passagem traduz tão bem sentimentos contraditórios que conformam a
montagem do arquivo pessoal, aliando a uma atmosfera melancólica, de
ruminação de perdas, um profundo desejo de curtir a vida.
Literatura e arquivo
A título de conclusão dessas considerações sobre os vínculos entre a carta e
o arquivo evidenciados pela correspondência dos escritores, quero sublinhar
dois aspectos que me parecem relevantes. Um diz respeito às conexões entre
literatura e arquivo; o outro remete à correspondência como espaço de
ficcionalização do arquivo por meio do qual se estrutura um desejo de escrita,
a subjetividade do escritor. De fato, o exame da correspondência trocada
entre nossos escritores modernistas, de modo particular entre os mineiros,
permite evidenciar a existência entre eles de uma profunda e clara consciência
de que, sem arquivo, é impossível construir uma obra de arte literária no
mundo moderno. Percebe-se neles aquele sentido histórico apontado por T.
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S. Eliot como indispensável para se tornar escritor (Cf. Eliot, 1989: 37-48),
que os faz cientes de que escrever literatura significa dialogar com a tradição
literária, com os autores do passado. Tradição antes construída que herdada
e diálogo marcado mais por tensões e crispações que por harmonia e
submissão, conforme revelam as cartas, e que os inclui de certo modo no
âmbito dos escritores críticos.
A interdependência entre arte e arquivo na cultura moderna mereceu
consistente elaboração por parte de Hal Foster em seu livro Design e crime (e
outras diatribes), especialmente no que concerne às conexões entre o museu e
as artes plásticas, visuais. Já aí Foster deslindava a emergência do museu, vale
dizer: do arquivo, como pré-condição para o desenvolvimento da arte
moderna. Argumento que explicita a partir do exame de mudanças relevantes
nas relações arquivais promovidas pela prática moderna da arte, o museu de
arte e a história da arte, que articulam uma estrutura da memória e uma
dialética do olhar marcada pelo jogo entre reificação e renovação (Cf. Foster,
2016: 81-96). No campo da literatura, o arquivo é a biblioteca, o equivalente
do museu nas artes visuais, e caberia pensar de que maneira as práticas
literárias, as histórias da literatura e a biblioteca reconfiguram o fazer literário
na modernidade. Afinal de contas, o escritor e o artista passam agora a
escrever e pintar a partir do que já foi escrito e pintado, valendo-se daquela
estrutura da memória. Tanto a argumentação de Foster quanto a que aqui
insinuo são tributárias da arguta observação de Michel Foucault no seu
“Posfácio a Flaubert”, a propósito de A tentação de Santo Antão, quando anota:
Flaubert é para a biblioteca o que Manet é para o museu. Eles escrevem, eles
pintam, em uma relação fundamental com o que foi pintado, com o que foi
escrito –ou melhor, com aquilo que da pintura e da escrita permanece
perpetuamente aberto. Sua arte se erige onde se forma o arquivo. […] eles fazem
emergir um fato essencial em nossa cultura: cada quadro pertence desde então
à superfície quadrilátera da pintura; cada obra literária pertence ao murmúrio
infinito do escrito. Flaubert e Manet fizeram existir, na própria arte, os livros
e as telas (Foucault, 2006: 81 –grifos meus).
Ora, ainda que muitas vezes de maneira deslocada, sob a forma do post-
scriptum, ou à margem e daí poder se falar de seu caráter oblíquo, essa
tematização do arquivo na correspondência de nossos escritores realça de
modo claro a montagem de sua biblioteca, bem como a importância de
organizar seus documentos e papéis. Para eles, a biblioteca é o arquivo por
excelência. Daí o afã com que desenvolvem suas práticas de arquivo, a
sociabilidade e cumplicidade em torno da montagem de seu arquivo pessoal.
Para eles, escrever consiste em apurar os olhos e ouvidos para apreender
Marques, “Cartas entre escritores…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 14 / Julio 2023 / pp. 76-100 97 ISSN 2422-5932
aquele “murmúrio infinito do escrito” que ressoa na biblioteca pessoal, figura
eloquente para eles daquela estrutura da memória.
Por fim, na medida em que o arquivo pessoal é encenado na
correspondência dos escritores, as cartas constituem também um espaço de
ficcionalização do arquivo. Fazem do arquivo um objeto paradoxal, a um só
tempo imaginário e concreto, pertencente à ficção e à realidade. Na forma
como o dramatizam na textualidade das cartas, desvelando seus processos de
arquivamento, os escritores montam uma imagem do arquivo situado num
plano imaginário, mobilizando um pensamento por imagem visível nas
figuras que habitam o espaço arquivístico: a biblioteca, o museu, a coleção, o
álbum, o inventário. Todavia, essa imagem do arquivo montada nas cartas
constitui também uma imagem de si, do escritor, visto que suas práticas
arquivais, entre elas as próprias cartas, performam um gesto autobiográfico,
por meio das quais se filtra um desejo de escrita, se desenha uma
subjetividade autoral.
Nesse processo de constituição de seu arquivo pessoal e de sua
encenação na textualidade das cartas, produzindo tanto uma imagem do
arquivo quanto uma imagem de si, é possível flagrar o mecanismo de
desdobramento do escritor num self ou personalidade autoral, o retorno
amigável do autor insinuado por Barthes em Sade, Fourier, Loyola. Penso aqui
no escritor entendido como o sujeito empírico, dotado de uma biografia
atestada por documentos, mas que não deixa de ser também um sujeito
mítico, cujo arquivo revela uma intencionalidade, um cuidado de si. Um
sujeito movido por uma paixão da escrita que se desdobra num autor, numa
inteligência que opera com a linguagem, com a tradição literária. E o faz
empenhado em firmar uma imagem de autor traduzida por aquele significante
na capa de um livro que constitui a assinatura autoral. Melhor dizendo, a
ficção de uma assinatura. Mas como deixam ver as práticas arquivais do
escritor e sua encenação nas cartas, essa figura autoral também fabrica tanto
o sujeito empírico, o escritor, quanto o seu arquivo, influenciando seus gestos
de seleção do que arquivar, alimentando suas poses e mitologemas. De tal
maneira que, nessa ficção do arquivo, longe de se constituírem entidades
separadas, escritor e autor estabelecem entre si um jogo de mútuas influências
e contaminações.
* * *
Com o advento da “era digital” no contexto dos anos 1980, uma parte
significativa das relações humanas passou a se realizar de forma virtual pela
mediação de tecnologias eletrônicas, computacionais. A recente pandemia do
Covid-19 contribuiu para tornar evidente, em nível global, esse processo de
digitalização dos contatos humanos, sociais e culturais, com a exigência
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incontornável de letramento digital. Demonstrou que o nosso
relacionamento mais constante e diário se dá com as máquinas: vivemos na
interface com nossos computadores pessoais, tablets e, sobretudo,
smartphones, segundo a lógica de seus programas. De modo especial, as
tecnologias digitais potencializaram a nossa capacidade de arquivar,
alimentando-nos com a fantasia de um arquivo infinito, tanto pessoal quanto
público, em que tudo pode ser arquivado, virtualmente armazenado,
digitalmente empilhado. Por conseguinte, também aumentou drasticamente
nossa capacidade de produzir passados, passados sempre na iminência de se
atualizarem no presente e se projetarem no futuro. Com impactos
significativos nos processos de construção das memórias e das identidades
quer coletivas, quer individuais.
Nesse ambiente, a troca de cartas no suporte papel entre pessoas e entre
instituições privadas ou públicas foi definitivamente suplantada pelas
mensagens eletrônicas enviadas por e-mail e pelas postagens nas redes
sociais, em cujas plataformas intercambiamos arquivos de som, imagens e
textos com nossos contatos pessoais e institucionais. Com isso, a carta
tornou-se praticamente um objeto arquivado, fazendo-nos tomar consciência
dela como objeto do passado. Enquanto tal, é que ela passou a ser objeto de
nossa atenção e estudo. Isso explica, a meu ver, nosso crescente interesse por
pesquisas e publicações da correspondência entre escritores e escritoras
preservada nos arquivos literários.
Como procurei demonstrar examinando a correspondência trocada
entre Abgar Renault e Carlos Drummond de Andrade, as cartas
desempenharam papel relevante na montagem de seus arquivos pessoais,
estimulada pela rede de relações de amizade e afinidades literárias, pela
sociabilidade intelectual. Pensando no devir dos arquivos literários, cabe
indagar a respeito de como se dão as práticas de arquivamento entre
escritores e escritoras no contexto das mensagens eletrônicas em meio digital.
Nesse sentido, vale a pena perguntar: qual é o destinatário ideal e como se
traduz o endereçamento perfeito no meio digital? Como fica a regularidade
dos envios num ambiente de conversa praticamente em tempo real, marcado
por um novo tipo de contrato, de etiqueta? Como se experimenta aquele
sentimento de “traição postal” devido ao silêncio, à ausência de resposta a
uma mensagem, talvez incrementado pelo desvio para a “caixa de spam”
como lixo eletrônico?
Uma questão mais relevante colocada pelas tecnologias digitais,
contudo, diz respeito ao acesso às mensagens trocadas pelos escritores e
escritoras. Particularmente se leva em conta o fato de que o meio eletrônico
permite aos correspondentes o envio e intercâmbio de inúmeros arquivos
como anexos ou por meio de links, incrementando a formação de seus
arquivos. Tendo em vista que as plataformas arquivam e guardam rastros de
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todas as mensagens trocadas, terão as instituições de guarda dos arquivos
literários e os pesquisadores acesso aos e-mails e mensagens dos
correspondentes em meio virtual? São algumas questões que apontam para
desafios e obstáculos que se colocam para o trabalho com arquivos de
escritores e escritoras na contemporaneidade.
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