Lima e Florim, “No vagar…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 17 / Diciembre 2024 / pp. 70-84 78 ISSN 2422-5932
Se o Outro já não é paisagem a ser enxergada ou conquistada é
porque seu corpo resiste, em alguma medida, às reduções. Nesse sentido,
o breu utilizado nas rubricas de Vaga carne nos aponta, durante a
montagem, não apenas para possíveis dispositivos de racismo e misoginia
ativáveis a cada vez que a luz se acende e vemos o corpo de Passô, uma
mulher preta, atuar, mas também para a solidão da voz, que nada enxerga
no lugar em que está – as vísceras de um corpo vivo de mulher. E se pouco
a pouco a voz começa a entender alguns elementos com os quais se depara
(um projétil alojado, pinos de metal, um bebê sendo gestado etc.), é
somente ao encarar o olhar dos outros, a plateia, que descobre o gênero
atribuído à carne que ocupa.
Mas o fato é que, sejamos leitores da dramaturgia de Passô, sejamos
plateia de sua peça, algo nos força a imaginar, nos impele à experiência de
um corpo invadido por uma voz que nem lhe pertence, nem lhe possui.
Um corpo que, num primeiro momento, não vemos. E, mesmo depois
que ele finalmente aparece, conforme indica a rubrica – “O corpo da
mulher é visto. E de novo, a Voz, no breu” (Passô, 2020: 23) –, permanece
como um Outro para nós. Afinal, como afirma Glissant, o opaco “não é
o obscuro, mas ele pode ser aceito como tal” (Glissant, 2021: 221).
A opacidade do corpo permanece porque, embora atravessado pela
voz, ele não tem a sua própria voz. Sua identidade (mulher, negra – esta
última característica sendo revelada textualmente só no final, quando a cor
da pele já foi várias vezes vista e não nomeada) não é essência ou amálgama.
Estamos diante de um corpo-paisagem, que não fala por si, mas que não se
deixa reduzir nem pelas palavras da voz, nem pelo olhar da plateia: o
procedimento de encenação aqui é justamente, como dissemos mais acima,
o de provocar um curto-circuito entre o que é dito e o que é visto.
Trata-se, em Passô, de fazer emergir um pensamento em torno do
visível e do invisível, da interioridade e da exterioridade, a fim de mostrar
essas duplas não como instâncias contrárias, mas como elementos
cambiáveis, a depender do ponto de vista – e de escuta. Não à toa, a voz
chamará o corpo preto de carne no decorrer da peça fazendo, logo de início,
algumas observações sobre ele: “Nada é oco por aqui. Não, não é oco. Tudo
tão deslizante, como os cremes. Escuro, tudo escuro. Escuro. Se virássemos
este corpo ao avesso, vocês entenderiam: aqui é um lugar escuro, escuro.
[...] Aqui dentro não entra o sol, o sol não entra, mas também não faz falta
nenhuma” (Passô, 2020: 23-24). E mesmo que a voz, no interior do corpo,
tenha encontrado um bebê, um projétil e um pino, nada disso foi
descoberto por sua visão (se é que ela a tem); e nada disso lhe confere o
conhecimento total da carne; ela não vê aquilo que de fato preenche a
matéria. Pois aquilo que a preenche se encontra na escuridão do interior –
na escuridão de um Eu que é Outro para a voz que o descreve. A escuridão