Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 34 ISSN 2422-5932
DAS TÉCNICAS E DOS IMAGINÁRIOS:
A LITERATURA DIGITAL BRASILEIRA NO LIMIAR
DAS DÉCADAS DE 90 E 2000
TECHNIQUES AND IMAGINARIES: BRAZILIAN ELECTRONIC LITERATURE
ON THE THRESHOLD OF THE 1990S AND 2000S
Rejane Rocha
Universidade Federal de São Carlos – CNPq
Docente titular da área de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Federal de São
Carlos/UFSCar/Brasil, onde também atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura/PPGLit.
Idealizou e mantém o ATLAS da Literatura Digital Brasileira, primeiro arquivo do gênero, no Brasil. Coordena
o Grupo de Pesquisa Observatório da Literatura Digital Brasileira. É bolsista Produtividade em Pesquisa do
CNPq.
Contacto: rejane@ufscar.br
ORCID: 0000-0002-5944-6846
DOI: 10.5281/zenodo.16387207
DOSSIER
Literatura digital,
cultura algorítmica y decolonialidad
Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 35 ISSN 2422-5932
Fecha de envío: 19/05/25 Fecha de aceptación: 24/06/25
Literatura digital brasileira
Imaginário tecnológico
Condições sociotécnicas
O artigo tem como objetivo analisar a literatura digital brasileira produzida entre as décadas de
1990 e 2000, considerando os condicionamentos sociotécnicos e os imaginários culturais a respeito
do computador e da internet do período. Argumenta que uma crítica consistente à literatura digital
deve contemplar as condições históricas de produção e recepção das obras, especialmente em contextos
periféricos como o Brasil. O texto descreve o desenvolvimento da infraestrutura digital no país e
examina como o imaginário em torno da tecnologia influenciou a produção estética. Duas obras são
analisadas: O livro depois do livro, de Giselle Beiguelman, e o Museu do essencial e do além disso,
de Regina Célia Pinto, ressaltando como essas criações dialogam criticamente com o momento histórico
e as possibilidades técnicas disponíveis. A proposta é articular uma leitura que combine reflexões
sobre a técnica e a experimentação estética, contribuindo para o debate sobre as especificidades da
literatura digital em contextos latino-americanos.
RESUMO
PALABRAS CLAVE
Brazilian Digital Literature
Technological imaginaries
Sociotechnological conditions
This article aims to analyze Brazilian digital literature produced between the 1990s and 2000s,
taking into account the sociotechnical conditions and cultural imaginaries regarding computers and
the internet during that period. It argues that a consistent critique of digital literature must consider
the historical conditions of production and reception of the works, especially in peripheral contexts
such as Brazil. The text outlines the development of the country’s digital infrastructure and examines
how the technological imaginary influenced aesthetic production. Two works are analyzed: O livro
depois do livro, by Giselle Beiguelman, and Museu do essencial e do além disso, by Regina lia
Pinto, highlighting how these creations critically engage with their historical moment and the technical
possibilities available. The article proposes a reading that combines reflections on technique and
aesthetic experimentation, contributing to the debate on the specificities of digital literature in Latin
American contexts.
KEYWORDS
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Introdução
Não é raro que a crítica que se debruça sobre a literatura digital não se
preocupe com o estabelecimento dos contornos sociotécnicos das obras que
são seu objeto de análise e muitos são os problemas resultantes dessa opção.
O primeiro deles diz respeito a um alheamento da obra de seu contexto
técnico de produção, o que, no limite, inviabiliza, no médio e longo prazo,
até mesmo a própria análise que se empreende. Mapear, descrever e
compreender quais teriam sido os dispositivos e softwares disponíveis - no
que tange às possibilidades que ofereciam e aos desafios que impunham -
para os criadores, à época de produção das obras, impede julgamentos de
valor anacrônicos, como também garante que a análise crítica ganhe em
legibilidade: com a obsolescência/instabilidade das condições técnicas, inserir
essas informações é um modo de garantir que os leitores possam
compreender os argumentos do analista mesmo que a obra não mais esteja
disponível ou que pareça incompreensível e, de quebra, o campo ganha
mais um instrumento de documentação/preservação das obras. A segunda
consequência diz respeito ao fato de que a desconsideração de fatores
sociotécnicos de produção das obras invisibiliza, por conseguinte, as
especificidades relativas à disponibilidade e ao uso da tecnologia digital, que
é francamente desigual em distintas regiões do globo, o que impacta as
possibilidades e formas de sua apropriação para a realização de experimentos
estéticos. Uma crítica localizada, que leve em consideração tais desigualdades,
tem condições de ajustar as suas lentes para compreender também as
especificidades da produção literária digital levada a cabo em países - como é
caso daqueles pertencentes ao Sul global e, especificamente, da América
Latina - que se localizam na periferia do desenvolvimento tecnológico, seja
porque não são produtores dessa tecnologia, seja porque seu manejo delas se
limite unicamente ao seu uso tecnicamente programado.
Neste artigo, tenho dois objetivos: descrever as condições sociotécnicas
do momento que, no Brasil, pode ser considerado como aquele
imediatamente anterior a um boom de produção da literatura digital. Uma
consulta ao banco de dados do ATLAS da literatura digital brasileira1 permite
observar que a primeira década dos anos 2000 viu um incremento notável
dessa produção - e as condições técnicas que o permitiram e o imaginário que
o impulsionou surgiram no momento histórico que visitarei na primeira e
segunda seções deste artigo. O segundo objetivo é analisar duas obras, uma
de 1999 e outra de 2000 o que farei na terceira seção que não apenas
mobilizam a tecnologia disponível, como também respondem ao imaginário
que se construía a seu respeito e, ao fazê-lo, incorporam-no, a ele
respondendo esteticamente. Conhecer as possibilidades técnicas desse
1 Disponível em: https://www.observatorioldigital.ufscar.br/atlas-da-literatura-digital-brasileira/
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momento fulcral para a literatura digital brasileira permite recuperar - ainda
que de maneira limitada o imaginário a respeito da internet e do próprio
computador pessoal, que circulava no momento em questão, além de
entender como os autores brasileiros, lidando com as possibilidades e
dificuldades, inseriam a sua produção no contexto desses dispositivos
técnicos e dessas disposições psíquicas a respeito da tecnologia digital que
começava a se popularizar no país.
Ao fim e ao cabo, elegendo um e outro objetivos como norteadores
desta reflexão, espero contribuir para uma abordagem da literatura digital
brasileira que esteja atenta aos seus contornos estéticos, ao seu contexto
sociotécnico e, também, ao seu modo de inserção - muitas vezes
problemático - no sistema literário e no campo dos estudos de literatura, no
Brasil.
Técnicas (e contornos sociohistóricos)
É de 1995 o marco cronológico que comumente é associado ao início da
internet comercial, no Brasil. Antes disso, durante a década anterior o
compartilhamento de dados por meio de computadores interligados estava
restrito a serviços oferecidos pela Embratel (Empresa Brasileira de Telefonia)
a seus funcionários, no âmbito do Projeto Ciranda,2 e às tentativas que
grandes universidades do país empreendiam para estabelecer conexões com
universidades estrangeiras.3 Apenas em 1988, a UFRJ conseguia seu primeiro
link de conexão com o exterior, tornando possível a troca de dados
informacionais com a Universidade de Maryland, nos EUA. No mesmo ano,
a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) criava
a rede ANSP (Academic Network at São Paulo), provendo
compartilhamento de dados com o FERMILAB (Fermi National Accelerator
Laboratory), de Chicago/EUA, e, logo em seguida, possibilitando a criação
de cinco nós da BITNET, cada um localizado em uma instituição de ensino
e pesquisa diferente do Estado de o Paulo: USP, UNICAMP, UNESP, IPT
e FAPESP.
As negociações para a criação de conexões de dados estavam
acontecendo, então, desde meados dos anos 80, capitaneadas por algumas
universidades públicas que reivindicavam, junto aos órgãos estatais, a
2 Sobre o Projeto Ciranda, consultar Carvalho e Cukierman (2009). Toda esta seção se baseia em
informações históricas compiladas por Carvalho e Cukierman (2009), Benakouche (1997) e Vieira (2003).
Considerações, reflexões e posicionamentos dos autores a respeito dos dados históricos e/ou
discordâncias serão referenciados individualmente, ao longo da seção.
3 As tentativas de conexão em rede, empreendidas pelas universidades, esbarravam no monopólio estatal
que reservava à Embratel todo e qualquer arbítrio a respeito do assunto em território nacional, uma
herança da compreensão do governo militar de que questões relativas ao compartilhamento de dados
deveriam ser tratadas como assuntos de segurança de estado.
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possibilidade de conexão com institutos de pesquisa do exterior, bem como
tentavam fazer ver aos órgãos governamentais (Ministério das
Comunicações/MiniCom e Secretaria Especial de Informática/SEI) que o
modelo então vigente de tarifação de dados inviabilizaria qualquer uso não
comercial da rede e talvez mesmo comercial, uma vez que as tecnologias
que tornaram possíveis as condições de viabilidade da internet comercial
surgiram dessas experiências no interior dos institutos de pesquisa
acadêmicos.
A gestão do Estado na viabilização e popularização do acesso à internet,
no Brasil, se deu não apenas no sentido de prover a infraestrutura necessária
para a conectividade dos microcomputadores que começavam a ser
adquiridos pelos usuários domésticos, a partir de meados da década de 80.
Tratou-se, também, de popularizar e de incentivar o uso dos serviços que
começavam a ser disponibilizados, uma vez que o uso doméstico de
microcomputadores era incrivelmente restrito àquela altura quanto mais se
comparados aos dias de hoje. De acordo com Benakouche (1997:129),
diferentemente dos usos bem definidos do computador nas esferas
empresarial e comercial, sempre relacionados com o aumento da
produtividade e da competitividade, não havia muita clareza em relação ao
seu uso para tarefas domésticas:
Os responsáveis por sua comercialização, tendo em vista a carência de
softwares voltados para essa clientela, referiam-se de um modo um tanto vago
às suas possibilidades educativas e lúdicas, às suas facilidades no controle do
orçamento familiar, no armazenamento de informações importantes para a
família etc.
A essa reflexão, Correia (2018:264) acrescenta um dado interessante.
Segundo o autor, é pertinente a hipótese de que os computadores
domésticos, no Brasil, ao longo da década de 80, tenham sido usados para
jogar. O autor ampara a sua hipótese no fato de que as publicações
especializadas em informática4 traziam, no início da década, conteúdos
dedicados ao mercado e à indústria de computadores, enquanto no final da
década, os conteúdos quase que exclusivamente se relacionavam aos jogos de
computador.
Em 1987, o número de assinantes da Rede RENPAC5 era de 110
pessoas, tornando evidente o fato de que prover a infraestrutura necessária
4 O autor se refere às duas principais publicações a respeito do tema, no Brasil, àquela altura: a Revista
Micro Sistemas e a Revista Byte.
5 RENPAC é a sigla da Rede Nacional de Pacotes, lançada em 1985, pela Embratel, para atender o
“grande público”. Teve baixa aceitação inicial, o que motivou a empresa a criar o Projeto Cirandão (cf.
Carvalho e Cukierman, 2009).
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para o compartilhamento de dados e informações não era suficiente para
popularizar o uso entre o que a Embratel entendia ser o “grande público”.
Os motivos da baixa adesão foram pelo menos dois: o preço dos
microcomputadores vendidos no Brasil e a falta de conteúdo que pudesse ser
um atrativo para que mais pessoas, inclusive aquelas que tinham
computadores em casa, acessassem os serviços de conexão oferecidos pela
Embratel. Os computadores lançados no mercado brasileiro, a essa altura,
custavam valores impeditivos para a grande maioria da população.6 Nos
tempos atuais, em que cada usuário da rede é, também, um provedor de
conteúdo em potencial, ao mesmo tempo que o mal de que se padece é o
excesso de dados e de informações, é difícil imaginar que, para impulsionar
o uso doméstico da internet, a Embratel tenha precisado conceber um
projeto ambicioso: o Cirandão.7 Lançado em 1985, o Cirandão pretendia
disponibilizar conteúdo para, então, estimular o uso da conexão
teleinformática pelo “grande público”. Para conseguir prover esse conteúdo
de interesse, que ampliasse os serviços oferecidos até então correio
eletrônico, uma pequena rede de anúncios e algumas poucas listas de
discussão , a Embratel fez parcerias com associações profissionais para que
estas disponibilizassem bancos de dados com informações de interesse para
os seus associados; além disso, lhes forneceu equipamentos, capacitação
técnica e espaço no computador central para que pudessem, enfim, tornar
públicos esses bancos de dados (cf. Benakouche, 1997:130).
Valores impeditivos dos equipamentos e conteúdo restrito formataram,
assim, a clientela inicial dos serviços de teleinformática no Brasil. Como nos
lembra Benakouche (1997), não dados que permitam localizar as
condições econômicas precisas desses primeiros usuários, mas a sua
profissão aponta para um perfil específico, tanto econômico quanto técnico:
engenheiros (quase 40% dos usuários entre 1986 e 1987), seguidos por
médicos, comerciantes, analistas de sistemas e advogados.
A despeito de os números de acesso não terem se alterado
substancialmente, continuando baixos, as políticas públicas brasileiras para a
6 Os modelos mais populares naquele momento, o TK-85, fabricado pela Microdigital, e o CP-500,
fabricado pela Prológica, custavam, respectivamente, 600 e 1.200 dólares (o que significaria, hoje, em
valores corrigidos e atualizados, cerca de 6.000 e 12.000 reais); isso em um contexto em que o salário
mínimo era de cerca de 26 dólares (cerca de 276 reais). Somam-se a esses valores impeditivos as
dificuldades de acesso às linhas telefônicas, necessárias para a realização das conexões discadas, e a
assinatura dos serviços oferecidos pela Embratel.
7 Inspirado no projeto anterior de menor alcance, o Projeto Ciranda, criado em 1982, que consistia na
disponibilização de microcomputadores aos funcionários da empresa, em casa e na própria sede, assim
como da tecnologia necessária para a sua interconexão; segundo Carvalho e Cukierman (2009:224), o
Ciranda se constituiu como a primeira “comunidade teleinformatizada do Brasil”, com a participação de
cerca de 2.100 funcionários e espalhada por mais de 100 cidades.
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teleinformática, nesses anos iniciais, são reconhecidas mundialmente pela sua
efetividade, como apontam Aguirre e Cornota (2009:14, tradução minha),8
ao identificarem-nas também como o motivo para a informação histórica a
respeito desses anos iniciais ser mais abundante, quando comparada àquela
disponível sobre outros países da América Latina:
O Brasil apresenta uma produção histórica importante, em termos relativos,
em grande parte devido ao impacto socioeconômico e político revulsivo
produzido pelas Políticas Nacionais que, com diferentes concepções, foram
desenvolvidas de meados da década de 1970 até o final da década de 1980.
Paralelamente a esse cenário nacional, empreendia-se, no panorama
internacional, o que ficou conhecido como “guerra protocológica”. No final
dos anos 80, quando o uso da BITNET, embora bem-vindo, se mostrava
insuficiente para as demandas acadêmicas brasileiras, ficou clara a
necessidade de criação de uma infraestrutura de acesso à internet. A sua
construção, no entanto, dependia da adoção de um protocolo de
comunicação a ser compartilhado pelas redes nacionais. O dilema se dava
entre a adoção de uma solução baseada em um modelo OSI, defendida pela
Secretaria Especial de Informática (SEI), órgão governamental que, desde o
governo militar, ditava as regras sobre o tema, e aquele que já começava a ser
popularizado internacionalmente e que seria adotado depois, mundialmente,
o TCP/IP. A adoção desse protocolo, no Brasil, se deu graças a um efeito
colateral da política de cortes adotada pelo governo Collor que, tendo
assumido em 1990, extinguiu a Política Nacional de Informática que, também
desde o governo militar, garantia os poderes da SEI.
Por outro lado, essa mesma política liberalizante foi um duro golpe para
a então insurgente indústria nacional de computadores, que se viu obrigada a
concorrer, sem nenhum tipo de apoio ou acesso a políticas de subvenção,
com gigantes internacionais do setor, como a IBM, o que culminou em uma
total desnacionalização da indústria.
Para a indústria nacional de informática a política industrial do governo
Collor trouxe as seguintes consequências: queda para US$ 223 milhões no
investimento em pesquisa e desenvolvimento em informática, na
microeletrônica o total de investimento caiu de US$ 59,2 milhões para US$
13,8 milhões; substituição da produção [nacional] pela importação, que
retirou do mercado de trabalho engenheiros e técnicos especializados;
8 No original em espanhol: “Brasil exhibe una importante producción histórica, en términos relativos, en gran medida
por el revulsivo impacto socioeconómico y político que produjeron las Políticas Nacionales que, con diversas concepciones, se
desarrollaron desde mediados de los setenta hasta fines de los ochenta del siglo pasado (Aguirre; Cornota, 2009:14).
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associação entre empresas nacionais e multinacionais (Santos Filho apud
Correia, 2018: 305).
Ao golpe sofrido pela sociedade brasileira por causa da suspensão das
políticas públicas de fomento à indústria computacional vinha a se somar
certo sentimento do tempo em que as grandes expectativas por um futuro
promissor para o Brasil, a reboque das esperanças de redemocratização e das
promessas de uma vindoura social-democracia, são contaminadas, desde
meados da década de 80, por uma sensação de difusa frustração, advinda de
muitos fatores conjunturais; no âmbito nacional, a não realização da tão
esperada eleição direta para presidente, seguida da morte de Tancredo Neves
e da ascensão de José Sarney visto como representante das antigas forças
políticas que se deveriam superar à presidência; no âmbito internacional, a
catástrofe de Chernobyl, a explosão do ônibus espacial Challenger e a queda
do índice Dow Jones, em 12 de outubro de 1987, agravada pela então recente
conectividade dos mercados, graças às tecnologias informacionais,
expuseram o fato de que o futuro encarnado pela computação não seria assim
tão idílico.
Assim, se durante a década de 70 os computadores eram apresentados
como equipamentos vindos do futuro, para melhorar a vida, organizar
informações, aumentar a produtividade e superar a ficção, como propagavam
as campanhas publicitárias da época, ao longo da década de 80 as sucessivas
crises que se impuseram para a sociedade brasileira e mundial não davam
suporte a esse imaginário tão utópico. É assim que, na passagem da década
de 80 para a década de 90, o marketing paulatinamente assume a tarefa de
(re)construir um imaginário no qual o computador é a metonímia de um
futuro nunca muito bem delineado inescapável e incontornável, ao qual
a sociedade poderia se render. A minha geração (nasci em 1974) ficou
marcada pela ideia de que nesse tal futuro que tinha começado, aqueles que
não soubessem lidar com os dispositivos computacionais o que também
pressupunha possuí-los seriam os próximos “analfabetos”.
Em 1991, a FAPESP, tendo adotado o modelo TCP/IP e aumentado
a sua capacidade de tráfego, início à disponibilização de conexões à, agora,
chamada “internet”9 para um número ainda pequeno de universidades de São
9 Embora usemos a palavra “internet” para designar qualquer tipo de troca de informações entre
computadores conectados a uma rede, stricto sensu ela deve ser empregada para as conexões posteriores a
1990, quando o suíço Tim Berners-Lee inventou a World Wide Web, tecnologia que possibilitou a troca
de informações entre distintos computadores, localizados em qualquer lugar do mundo, por meio da
tecnologia dos hiperlinks e da identificação de cada um dos documentos disponibilizados com um
localizador, um endereço denominado Uniform Resource Locator (URL). Também foi fundamental para
a popularização da então recém-surgida “internet”, a criação de interfaces amigáveis que possibilitavam
a visualização de conteúdos de maneira fácil.
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Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais todas do eixo Sul-
Sudeste do país, sublinhe-se.
Com a criação da infraestrutura que, paulatinamente, se instalou no
país, foi possível, por exemplo, que o terceiro setor, representado naquele
momento pelo IBASE,10 se tornasse também usuário da tecnologia que até
então estava restrita ao ambiente acadêmico. Assim é que, em 1992, durante
a realização da Conferência Rio-92, o Instituto capitaneado pelo sociólogo
Herbert de Souza (Betinho) e pelo economista Carlos Afonso pôde viabilizar
o projeto Alternex, com financiamento das Nações Unidas, e prover conexão
à internet para a Conferência. Findo o evento, a infraestrutura de conexão se
manteve e a Alternex, que então provia internet para outras demandas,
inclusive comerciais, tornou-se o primeiro serviço provedor de internet
brasileiro.
Apenas no final de 1994 o governo federal assumiu como prioritária a
tarefa de instituir a infraestrutura necessária para a consolidação do uso
comercial da internet. Tal tarefa ficou a cargo da Embratel, que contou com
a parceria das universidades, uma vez que estas possuíam a expertise no
protocolo TCP/IP, que se consolidava como o protocolo mundialmente
adotado. Passado esse estágio de implementação, a Embratel começou a
oferecer seu serviço de acesso à internet discada, inicialmente a um grupo de
5 mil usuários e, posteriormente, ampliando a oferta de modo definitivo. Em
1995, o Ministério das Comunicações retirou da Embratel a exclusividade na
exploração comercial da internet, o que foi bem-visto pelo mercado, mas que
também gerou preocupações a respeito do total descontrole do setor. É assim
que surge o CGI Comitê Gestor da Internet, em atividade até os dias de
hoje, que conta com representantes do governo, das operadoras de backbone,
da comunidade acadêmica, dos provedores de acesso e dos usuários.
A despeito dessa disponibilização dos serviços de conectividade e da
disponibilização da computação doméstica a um número maior de usuários,
o uso de computadores no Brasil, até a segunda metade da década de 90,
ainda permanecia como privilégio de “especialistas, burocratas, hackers,
jovens e nerds” (Correia 2018:316), e se tratava de um desafio para o mercado
de computadores pessoais e para os serviços de conexão à internet remover
do computador a pecha de equipamento difícil, inacessível e misterioso para
não iniciados.
O que se percebe é que, a par dos trancos e barrancos enfrentados tanto
pela indústria nacional para a fabricação e disponibilização de computadores
menos caros para a população não especializada, quanto pelos serviços que,
então, disponibilizavam a conectividade em rede para os usuários daqueles
10 Sigla de Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, organização não governamental fundada
em 1981.
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computadores, o imaginário a respeito dos computadores e da própria
computação foi se estabelecendo paulatinamente desde a inserção das
primeiras máquinas no Brasil, ainda durante a década de 70, até o momento
que se pode efetivamente compreender como o da popularização dos
dispositivos e da conectividade digital, entre nós.
Imaginários (e representações culturais)
Se se pode eleger o ano de 1995 como o marco inicial da internet comercial
no Brasil, é no mesmo ano que se pode buscar a chave de compreensão dos
movimentos que tornaram o computador e a internet, efetivamente, parte da
vida dos brasileiros. Os custos continuavam altos: ter um computador
pessoal custava 800 reais, em um contexto de salário mínimo mensal de 100
reais (em valores da época), e a conexão à internet dependia de acesso à linha
telefônica, um “patrimônio” muito valioso e restrito a poucos no Brasil da
década de 90.11 O que explica a popularização do computador e da internet,
então, não é a ampliação do acesso, nem o barateamento dos custos de
aquisição de equipamentos e de conectividade, mas sim a disseminação de
suas imagens e representações na mídia massiva, que a essa altura
relacionava o equipamento às promessas de “mundo sem fronteiras” que se
vinculavam à internet. Alguns acontecimentos podem ser aqui arrolados, a
fim de se compreender como a década de 90 se constituiu como o ponto de
virada na difusão de uma ideia de informatização irrestrita da sociedade.
No ano de 1995 ocorre o lançamento do Windows 95, software que foi
um dos responsáveis pela popularização do computador como um
equipamento acessível, que podia ser manejado por leigos.12 Isso não apenas
pela sua interface, que naquele momento consolidava o design das janelas
que alternavam, de maneira quase intuitiva, os diversos modos de
funcionamento do computador, sem que o usuário tivesse que dar comandos
específicos, mas também pelo seu apelo relacionado à internet e ao acesso à
tecnologia multimídia.
A multimídia, como ficou conhecida a tecnologia que permite integrar
múltiplas modalidades de percepção a partir da ferramenta computacional,
que teve a sua estreia na década de 90 e foi impulsionada pelo Windows 95,
transformou o computador pessoal em uma central de entretenimento. E não
seria exagero dizer que a possibilidade de ouvir música, assistir a vídeos, ler
textos e, em alguns casos, interagir com esses produtos culturais a partir da
11 Para fins de comparação: nos Estados Unidos um computador multimídia custava, em 1995, cerca de
2000 dólares, aproximadamente o valor de 3 salários mínimos mensais.
12 No Jornal Nacional que noticiou o lançamento do Windows 95, Cid Moreira anunciava o
“supersistema que vai ajudar até quem não entende nada de computadores”. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=8YENUZRTqkc.
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tela do computador iniciou o fenômeno de digitalização da cultura que
alterou profundamente os modos de produção, circulação, armazenamento e
consumo dos bens culturais, fossem eles livros, músicas, jogos,
informações.13 Quase que simultaneamente ao lançamento estrondoso do
Windows 95, que contou com o uso de uma música dos Rolling Stones como
trilha sonora, além da criação de um “Cyber-Siticom” para apresentar as
possibilidades do novo software, num investimento total em marketing que
ultrapassava os 300 milhões de dólares, Bill Gates lançava o seu livro A estrada
do futuro, que então pavimentava com o perdão do trocadilho o percurso
do computador como ferramenta indispensável para fazer parte da
“revolução da informática”, que, segundo o proprietário da Microsoft:
vai aprimorar o período de lazer e enriquecer a cultura através da expansão e
distribuição da informação. Vai ajudar a aliviar a pressão nas áreas urbanas
permitindo que os indivíduos trabalhem em casa ou em escritórios remotos.
Vai aliviar a pressão sobre os recursos naturais, porque um número grande
de produtos poderá tomar a forma de bits em vez de manufaturados. Vai nos
dar maior controle sobre nossas vidas e permitir que experiências e produtos
sejam adequados aos nossos interesses. Os cidadãos da sociedade da
informação terão novas oportunidades no que se refere a produtividade,
aprendizagem e lazer (Gates, 1995:305).
Correia (2018: 328) chama a atenção para o fenômeno editorial que
representou o livro em questão: foram vendidos, no Brasil o livro teve
lançamento simultâneo em 20 línguas diferentes , 100 mil exemplares da
tiragem inicial, que se esgotou ainda na p-venda, e a Companhia das Letras
(em parceria com a Itautec, fabricante de microcomputadores) editou mais
25 mil cópias. Os números chamam a atenção e apontam para a maneira
como as premissas de Gates se constituíam como promessas e se
relacionavam, evidentemente, com os produtos que a sua empresa, a
Microsoft, colocava à venda. Mas não isso: relacionavam- se com um
imaginário a respeito dos computadores e da internet que, no Brasil, apenas
começava a se consolidar.
13 As tecnologias multimídia começaram a se integrar ao sistema operacional Windows já em 1991, com
a versão 3.0 e suas extensões específicas para CD-ROM. Ainda que o Windows 95 tenha representado
um avanço em termos de interface e funcionalidade, é importante lembrar que o suporte a mídias ópticas
e a recursos multimídia estava presente nos sistemas anteriores. Nesse contexto, a popularização do
correio eletrônico, substituindo os sistemas de fax e de envio físico de documentos, talvez tenha sido o
aspecto mais revolucionário da digitalização para o consumidor médio, antecipando as promessas de
instantaneidade e conectividade que definiriam os anos seguintes.
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Em 1995, estimava-se que 50 milhões de pessoas no mundo eram
usuárias da internet. No Brasil, esse número se limitava a 120 mil pessoas.14
Ao final do mesmo ano, a novela Explode coração atingia o número de 55
milhões de espectadores. Para além do conhecido fenômeno das novelas
brasileiras, que, durante muito tempo, garantiram à Rede Globo tais
patamares de audiência, o que importa mencionar, aqui, é que essa novela foi
a primeira, no Brasil, a colocar a internet e os computadores como elementos
centrais de sua trama. No dia 5 de novembro de 1995, Maria Ercília (1995:
s/p), colunista da extinta “Folha TV”, chamava a atenção para o fato:
No Brasil tudo vira novela – até rede de computador. A inclusão da Internet
no roteiro de “Explode Coração” vai apresentar a rede a uma imensa
quantidade de pessoas que nunca ouviram falar nela e nem sequer cogitaram
comprar um computador.
E arremata:
o número de pessoas que vão assistir a uma novela sobre a Internet no Brasil
pode ser o mesmo que as que efetivamente usam a Internet no mundo inteiro.
À falta de telefones e computadores, a rede vai entrar definitivamente no
Brasil pela janela – da TV.
A ironia da colunista não poupa as condições ainda muito desfavoráveis,
como mencionei antes, para a efetiva popularização da internet e dos
computadores no Brasil; também deixa entrever uma menção às tais janelas
que tanto foram popularizadas pelo Windows 95 em sua campanha de
lançamento milionária. Tampouco a colunista deixa de antever que a
popularização do computador e da internet, no Brasil, se daria, a princípio,
mais como imaginário, como ideia de potencialidades e perigos mais ou
menos difusos, do que como resultado do uso doméstico efetivo dos
equipamentos e serviços.
Na trama, escrita por Glória Perez, a internet é importante sublinhar,
metonimicamente representada pelo Windows 95 possibilitava o
envolvimento amoroso do par de protagonistas, uma vez que eles tinham se
conhecido e se comunicavam por chats online. Em trama secundária, outro
personagem se valia do que se conhecia como “anonimato total” na internet
para seduzir outra personagem, descrevendo-se como mais apetecível do que
realmente julgava ser “ao vivo”. Um terceiro nó narrativo colocava na trama
14 A informação consta em reportagem da Revista da Folha, em edição especial de retrospectiva, cujo tema
central foi a internet. Disponível em:
https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=13019&anchor=5672806&origem=busca&originURL
=&maxTouch=0&pd=806cf899e68ecbc7fe7be73f517c9230.
Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 46 ISSN 2422-5932
a descoberta de uma fraude econômica, cometida por um usuário da internet
que invadia o sistema de um banco internacional. A escolha de tais temas
evidentemente coloca em pauta os topoi narrativos das novelas das oito, da
Globo: romance e dinheiro. Mas também coloca em pauta os temas que
povoavam o imaginário popular a respeito dos computadores e que se
aprofundaram ao longo do restante da década: a questão do anonimato,
praticamente inescapável em tempos de chats e nicknames; a propalada
possibilidade de falar não apenas à distância (algo que já era possível com as
ligações telefônicas), mas também com totais desconhecidos e, quiçá,
começar assim um relacionamento amoroso; e, por fim, o temor dos
“hackers”.
Nas páginas dos jornais,15 ao longo da década de 90, também
circulavam notícias e reflexões de maior ou menor fôlego sobre o que seria a
tal “revolução digital”. Exemplo delas é o dossiê que, em maio de 1993, o
extinto caderno “Mais!” da Folha de São Paulo dedicou às questões
relacionadas ao livro e à escrita no contexto da, àquela altura, ainda incipiente
digitalização da cultura que, na ocasião, apenas se pressentia no Brasil. Na
primeira reflexão, um longo texto de Arlindo Machado intitulado “Livro
perde papel e vai para a tela” preconizava que “Novas tecnologias
revolucionam as possibilidades de leitura, acrescentam som e imagem em
movimento ao texto e permitem registrar uma biblioteca inteira num único
Compact Disc”. O título e o olho, à primeira vista bastante entusiasmados
em se levando em consideração o contexto tecnológico brasileiro em 1993,
traduzem bem o tom do texto argumentativo de Arlindo Machado, que
discorre bem pouco sobre a situação do momento em que desenvolve a sua
argumentação e, em contrapartida, muito sobre o que se acreditava que seria
tal contexto alguns anos à frente. É assim que, sem nenhuma cerimônia e
com muitas certezas, o autor preconizava que
[…] o modo de produção do livro é lento demais para um mundo que sofre
mutações vertiginosas a cada minuto. Os atrativos do livro empalidecem
diante do turbilhão de possibilidades aberto pelos meios audiovisuais,
enquanto sua estrutura e funcionalidade padecem de uma rigidez cadavérica
15 Como a intenção, aqui, é apenas ilustrar o argumento de que havia um imaginário a respeito da
tecnologia compartilhado em maior ou menor medida por especialistas, publicitários, produtores e
empresários do ramo, o vou aprofundar a discussão dos dados, que foram coletados na hemeroteca
construída, ao longo de cerca de duas décadas, pela Profa. Dra. Tânia Pellegrini e hoje disponível no
Núcleo Interdisciplinar Literatura e Sociedade/NILS/CECH/UFSCar. A consulta à hemeroteca
também possibilita refletir a respeito de quais notícias interessavam a uma professora universitária,
dedicada à literatura brasileira contemporânea, no que concernia ao tema “Literatura e Internet”, etiqueta
a partir da qual esses textos estão organizados no arquivo.
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Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 47 ISSN 2422-5932
quando comparadas com os recursos informatizados, interativos e
multimidiáticos das “escrituras eletrônicas” (Machado, 1993: s/p).
Sem que se entre no mérito das comparações entre livros impressos e seus
correlatos digitais, as reflexões de Arlindo Machado o bastante sintomáticas
de um momento em que a digitalidade, ainda por se consolidar, se oferecia a
efabulações que, necessário dizer, não eram de todo impossíveis de se
realizarem. Onde não havia caminhos prontos havia, porém, todas as
possibilidades de caminho. Pelo menos enquanto Bill Gates não tinha
pavimentado a sua “estrada do futuro”.
No mesmo dossiê do qual faz parte o artigo de Arlindo Machado,
Nelson Ascher (1993: s/p) refletia de modo um pouco mais ponderado e,
diga-se de passagem, em espaço bem menor e menos prestigioso, em texto
de apenas duas colunas, na lateral da página em contraposição, o artigo de
Arlindo Machado ocupava toda a primeira página do dossiê. Nele, lemos:
Walter Benjamin em “Rua de mão única”, previu equivocadamente que no
futuro dele (nosso presente ou passado) o livro seria apenas um veículo de
comunicação entre dois fichários, algo que hoje equivaleria a um disquete
entre dois micros. O que se verifica, porém, é que micros e disquetes
tornaram-se, em grande parte dos ramos do saber, o breve interlúdio durante
o qual uma informação se modifica (nem sempre para melhor) no trânsito de
um livro para outro.
Curioso notar que Ascher reflete a respeito dessa oposição livro versus
computador (e disquete, CD-ROM) valendo-se do mesmo texto de Benjamin
que Arlindo Machado citara em seu artigo mas com argumentação
diametralmente oposta. Ascher parece ver, no computador, pouca coisa além
do que, àquela altura, estava disponível para usuários não especializados, a
digitalização de conteúdos. E é com base nisso que constrói a sua “defesa”
do livro.
Em outra coluna, ao lado da assinada por Nelson Ascher, Marcos
Augusto Gonçalves cobre o lançamento do “livro multimídia” Terreiro
eletrônico, produzido por Caio Barra Costa. Tratava-se de um CD-ROM que
abrigava um projeto multimodal a que, atualmente, talvez não
chamássemos de “livro” a respeito das religiões de matriz africana, ou como
diz o jornalista: “Uma sofisticada viagem eletrônica pelo mundo do
candomblé”. A descrição dos processos de interação entre a obra e o leitor,
descritos nos termos de “aperta-se uma tecla”, “aperta-se um botão”, “leem-
se textos”, “assistem-se a vídeos”, a medida do que se estava produzindo
naquele momento e, talvez, do que tinha em mente Arlindo Machado quando
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Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 48 ISSN 2422-5932
fazia o seu diagnóstico a respeito da obsolescência do livro em face das
tecnologias emergentes.
O que descrevi antes é importante para situar adequadamente as
condições técnicas e imaginários que ofereceram os contornos da literatura
digital brasileira a partir da década de 90 quando, a despeito de a tecnologia
ainda permanecer indisponível para grande parte da população, os
imaginários a ela relativos passam a circular de maneira mais ampla. Aos
autores que, como é o caso de Augusto de Campos, desde meados da década
de 80 faziam seus primeiros experimentos literários com seus primeiros
computadores pessoais, apresenta-se a possibilidade, ainda que um pouco
distante, de não apenas produzir as suas obras a partir de expedientes
computacionais, como também de tor-las disponíveis em CD-ROMs que
poderiam ser acessados pelos leitores a partir dos seus próprios
computadores pessoais aquela nova central de entretenimento doméstico
que, a despeito dos elevados custos, começa a entrar na casa das pessoas. Isso
sem mencionar a possibilidade, que começava a se desenhar, de disponibilizar
as obras online, na rede que então começava a ganhar viabilidade técnica e
comercial. Assiste-se, assim, ao início da passagem do que Cleger (2016)
designa como computador autônomo para o computador em rede, a internet.
A produção de Augusto de Campos que, lembremos, tinha se lançado
à experimentação com a transcodificação ainda na década de 80 é um bom
exemplo desse momento em que o CD-ROM se abria como uma
possibilidade de fazer circular as obras multimodais que começavam a ser
produzidas em Macromedia Director ou em Macromedia Flash. Em 2003, o
poeta encarta no livro Não um CD-ROM com clip-poemas produzidos em
1997 e em 2003:
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Figura 1. de Campos, Augusto. Encarte do CD-ROM que acompanhava o
livro Não, 2003.16
Os animogramas, interpoemas e morfogramas, todos de 1997, tinham feito
parte da exposição Arte Suporte Computador, organizada pela Casa das
Rosas em novembro de 1997. Durante essa exposição, realizada a um
tempo in loco e online, Augusto de Campos disponibilizou seus poemas no
site criado para o evento, juntamente com outros artistas, brasileiros e
estrangeiros. No catálogo (1997:10) da exposição, o poeta explicava que as
suas experimentações com o computador começaram ainda no início da
década de 90, em um movimento que ele descreve como natural, dado o seu
percurso de criação, sempre interessado em fazer a poesia extrapolar o
suporte paradigmático da página no códice, e que a organização dos poemas
nas seções “animogramas”, “interpoemas” e “morfogramas”, que anos mais
tarde seria reproduzida no CD-ROM Não (2003), era uma forma de “orientar
16 Captura de tela realizada pela autora a partir de vídeo. Disponível em:
https://youtu.be/nhVryE_VII8?t=4547.
Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
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o usuário”. É interessante notar isso que, na explicação de Campos, dá o tom
de todo o catálogo: uma preocupação quase pedagógica, ainda que sem
prescindir de uma linguagem-manifesto, de orientar (para usar a palavra
utilizada pelo próprio Augusto) o visitante que, então, entrava em um
contexto expositivo em que à experimentação artística se somava a
experimentação tecnológica.
Não por outro motivo, abre o catálogo o texto designado “Manifesto”
e assinado pelo então diretor da Casa das Rosas, José Roberto Aguilar. Um
longo ensaio, para o que se propõe a ser um texto de abertura do catálogo de
uma exposição, em que o autor resgata a história do surgimento do livro e de
sua relação com o advento da racionalidade moderna; e a história do
surgimento do PC e de sua relação com o advento de alguma outra
racionalidade que então apenas se vislumbrava. Diante das novidades que a
popularização do computador e o surgimento da internet anunciavam
(lembremos que a internet comercial começara a ser disponibilizada, no
Brasil, apenas dois anos antes da abertura da exposição), tudo era, mesmo,
manifestações de possibilidades que, enfim, se confundiam com desejos e
projetos que começavam a desenhar outra forma de lidar com as
informações, fossem elas práticas, fossem elas artísticas e tudo isso bem
embalado em discursos publicitários, como vimos. O imaginário projetivo a
respeito do que viria a ser a rede e do que faríamos com ela17 estava, então,
se construindo e não é raro encontrá-lo também em textos acadêmicos
publicados na época. Não se trata, aqui, de afirmar que não eram (são) textos
sérios, mas de reconhecer que tudo o que se apresentava, então, eram menos
possibilidades concretas, limitadas por dificuldades relativas ao alcance da
tecnologia, somadas às questões socioeconômicas, como vimos antes, e
mais projeções mais ou menos utópicas, traduzidas em discursos mais ou
menos teleológicos a respeito do futuro informacional e também artístico que
nos esperava.
No seu “Manifesto”, José Roberto Aguilar projetava as utopias tão
recorrentes à época, mas também explicitava as preocupações do momento.
Nas suas palavras: “A rede te torna passivo, uma vaca ruminando no monitor
colorido” (Aguilar, 1997: n.p.), o que, convenhamos, parece estar mais
próximo das críticas que, àquela altura, eram feitas à televisão, mas que
também podem estar relacionadas com os usos que, àquela altura, eram feitos
da internet. Seja como for, o “Manifesto” é também um chamamento à arte,
17 Esse imaginário é esquadrinhado de forma bastante crítica no texto seminal de Barbrook e Cameron,
“A ideologia californiana”. Publicado originalmente em 2005, o artigo continua sendo a melhor fonte de
referência e de reflexão a respeito das ideologias que se articularam para dar origem ao que, até hoje, em
maior ou menor proporção, modela as concepções correntes sobre a “revolução digital”. O artigo, com
tradução de Marcelo Träsel, pode ser baixado em: https://baixacultura.org/a-ideologia-californiana/.
Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
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que deveria se colocar, então, como antídoto a uma apropriação tão
burocrática de possibilidades tecnológicas tão interessantes.
Voltando ao espaço ocupado por Augusto de Campos na referida
exposição, é interessante notar que, para resenhar os seus poemas, a Folha de
São Paulo tenha escalado um cineasta, que assim os descreveu no dia 17 de
novembro de 1997:
Conjugando invenção estética e perícia técnica, esses 16 curtos e densos cine-
poemas integram (interagem) com o sonho de um concreto poema
“verbivocovisual”, acalentado desde os anos 50.
[…]
Os “interpoemas” são peças plenas de possibilidades múltiplas, que
presumem a intervenção interativa do leitor. Os “animogramas”, poemas
convertidos à criação em movimento e som.
Os “morfogramas” são pares de figuras em “paideuma”, na definição
poundiana de cultura (“conversa entre homens inteligentes”).
Os “clip-poemas” são ainda experiência radical e inclassificável. O poeta
prefere citar como lema e totem o que disse Mallarmé de seu “Lance de
Dados”: “Sem presumir do futuro o que sairá daqui: nada ou quase uma Arte”
(Adriano, 1997).18
A resenha deslinda a curiosa interpenetração de mídiuns19 que então apenas
começava a se estabelecer, quando a computação pessoal tornou possível que
o poeta construísse as suas próprias peças multimodais algo que apenas dez
anos antes, lembremos, tinha requerido um mainframe, softwares
ultraespecializados e equipe técnica altamente qualificada. O resultado ainda
poderia ser conferido em espaços expositivos, muitos dos quais haviam
abrigado exposições de poesia concreta, mas agora uma outra possibilidade
estava posta e a poesia também poderia ser fruída naquela mesma “central de
entretenimento” multimídia doméstica que, como mencionei antes, era
majoritariamente utilizada para jogos de computador. Ao menos era o que
propunha a exposição, que contava com um “web canal”,20 “que é uma
18 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq171108.htm.
19 O conceito de mídium é central na Midiologia, campo de estudos fundado por Régis Debray (1993,
2000), que propõe que o mídium não é apenas um canal neutro de transmissão, mas um elemento ativo
que molda e é moldado pelas práticas culturais e sociais.
20 Infelizmente não há nenhum registro do web canal criado para a exposição; a primeira captura do site
disponível na Wayback Machine (veja: http://www.dialdata.com.br/casadasrosas) é de de fevereiro
de 1998, seguida pelas de e 2 de dezembro do mesmo ano. Todas elas retornam uma página preta,
apenas com o nome “Casa das Rosas” no meio da tela. Temos que nos satisfazer, então, com aquilo que
se descreve no catálogo: “O Web Canal é a janela de comunicação da Casa das Rosas. O objetivo é
desenvolver, através desta estação na internet, programas interativos e ao vivo de entrevista, música,
animação, literatura e vídeo […]. O Web Canal complementa também o acervo digital de arte, vídeo,
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espécie de capitão de bordo (nosso avatar?) para vários pontos interessantes:
o da língua portuguesa, vídeo-arte, música, dança e muitos outros. AO
VIVO” (Aguilar, 1997: 2). O web canal hoje chamaríamos de site talvez
pudesse ser encarado como um precursor das exposições virtuais a que tanto
nos acostumamos no pós-pandemia de covid-19, mas era, ele também, um
objeto expositivo, na medida em que se transformava em “site navegante”,
assim descrito nas páginas iniciais do catálogo:
É a instalação de nossas páginas sendo projetadas num telão. É navegante
porque acontece automaticamente. É uma sala para preguiçosos. Você não
precisa fazer nada. Apenas sentar num carpete macio e felpudo. Nós sabemos
que 95 por cento das pessoas não têm paciência para acessar a rede (Aguilar,
1997: 3).
Não deixa de ser uma genial ironia (deliberada?) oferecer ao visitante da
exposição um espaço em que ele pudesse “assistir” à internet com tudo o
que isso significa de passividade, aquela criticada pelo diretor da Casa das
Rosas, autor do manifesto que resgatamos antes. Ao mesmo tempo, essa sala
coloca em evidência os mecanismos daquilo que Bolter e Grusin anos mais
tarde denominaram, em Remediation: Understanding New Media (2000:15,
tradução minha), como “remidiação”, na tentativa de descrever o contexto
cultural complexo de convivência de distintos meios e tecnologias, quando
“os novos meios de comunicação social […] apresentam-se como versões
remodeladas e melhoradas de outros meios de comunicação social”.21
A resenha da Folha de São Paulo a respeito dos poemas de Campos
deslinda, também, certa incerteza metalinguística ao lidar com os objetos
poéticos; o resenhista, cineasta, aproxima de seu próprio universo esses
poemas que ainda parecem ser tão dificilmente apreensíveis dentro dos
limites artísticos convencionais: poesia para ser assistida em espaço de
museu? Filme para ser lido na tela do computador? O que se anuncia é a
emergência do computador como um metameio no qual convergem todos
os outros e no qual convergem todas as convenções e práticas artísticas e
todos os protocolos de fruição e consumo. Em defesa do resenhista, no
entanto, percebe-se que não apenas os textos do catálogo como também a
organização do espaço expositivo conduziam para uma leitura de
aproximação dos protocolos de fruição de imagens cinematográficas
embora a popularidade muito maior da TV, entre nós, assim como o lugar
texto, animação, projetos multimídia, VRML (realidade virtual) da Casa das Rosas” (1997, p. 38). Mais
uma vez é evidente a presença de um vocabulário televisivo para descrever o que foi esse Web Canal,
produzido pelo músico e web artista R.H. Jacson.
21 No original em inglês: new media are […] presenting themselves as refashioned and improved versions of other
media” (Bolter; Grusin, 2000: 15).
Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
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físico semelhante que o computador viria a ocupar (a tela no ambiente
doméstico), faça com que essa comparação também esteja sempre subsumida
nos discursos a respeito do que deveria ser o computador, nos termos de sua
apropriação cultural em um contexto de remidiação.
Em 1999, portanto apenas quatro anos depois que a internet comercial
teve início no Brasil,22 Augusto de Campos colocava no ar o seu site pessoal
e, nele, disponibilizava os clip-poemas que, mais tarde, fariam parte do
livro/CD-ROM Não, além do “Poema-bomba”. que fizera parte do projeto
Poesia Visual.
A inacessibilidade atual do site do poeta me ensejo para refletir a
respeito não apenas das condições, digamos, “macro” de produção da
literatura digital no Brasil, mas também das condições “micro”, em nível
individual. Ao autor que, durante a década de 90, quisesse experimentar com
a tecnologia disponível e, além disso, quisesse fazer essa produção circular,
ser consumida e ser lida, apresentavam-se algumas possibilidades e,
evidentemente, algumas limitações. Era, então, necessário que ele tivesse um
computador pessoal munido de softwares que lhe possibilitassem esses
experimentos.23 A época, fascinada pelas possibilidades da multimídia em
grande medida a reboque da campanha publicitária do Windows 95 assistia
à popularização de softwares de autoração multimídia, como o Macromedia
Director e, em seguida, o Flash. A produção de uma obra multimodal, nessa
altura, devia pressupor um veículo de disponibilização para o leitor, o que,
antes da internet, em 1995 e mesmo durante toda a década de 90 ,
significava a produção de um CD-ROM. Essa tecnologia apresentava muitos
problemas de compatibilidade, a depender do sistema operacional instalado
na máquina do leitor, um custo relativamente alto e os mesmos problemas
de distribuição do livro físico. Isso tudo sem contar que, lembremos, o leitor
deveria possuir um computador munido do então chamado “kit multimídia”
para que pudesse ler essas obras.
A disponibilização de uma obra multimodal pela internet, tal qual ela se
configurava ao longo da década de 90, também não era simples. A largura de
banda, de cerca de 64 Kbps em 1999,24 limitava incrivelmente a produção,
22 Não dados seguros a respeito do número de usuários da internet no Brasil, no fim da década de
90, mas o número é estimado em cerca de 2 milhões de pessoas. Ver: História da informática e da
Internet: 1990-1999. Disponível em: https://dicas.ufpa.br/net1/int-h199.htm#brasil90.
23 Para mais informações a respeito de como e com quais meios Augusto de Campos começou seus
experimentos com o computador pessoal e a tecnologia digital então disponível, recomendo a palestra
de André Vallias no evento “Augusto 90”, promovido pela Casa das Rosas, em 2021. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=nhVryE_VII8&t=4547s.
24 “Largura de banda” é a expressão utilizada para fazer referência à “quantidade máxima de dados que
podem trafegar em uma conexão à Internet em um determinado período de tempo. A largura de banda
é medida em bits por segundo (bps), embora normalmente seja mais comum utilizar múltiplos, como
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uma vez que obras pesadas, que apresentassem recursos sofisticados de
imagem, som e vídeo, eram inviáveis. A popularidade do Flash como
software de produção de obras digitais, no Brasil, em grande medida está
relacionada com o fato de que ele resolvia parte desse problema, ao
possibilitar a produção de obras mais “econômicas” em termos de dados e,
portanto, de “peso”. De qualquer maneira, lembremos, para que o leitor
pudesse acessar, por exemplo, o site de Augusto de Campos que entrara no
ar em 1999 - e também as duas obras que analiso na próxima seção -, era
necessário ter um computador pessoal com um sistema operacional
compatível, com o hardware necessário (placa de vídeo e som) e os
periféricos exigidos (caixa de som), além de conexão, discada, à internet.
Dado esse contexto inicial, é possível olhar para as obras digitais
brasileiras produzidas ao longo dos anos 90 com um pouco mais de atenção.
Trata-se de obras que surgem no momento mesmo do início da
popularização do computador pessoal e do surgimento da internet no Brasil,
nas condições às quais antes me referi. É incontornável compreendê-las nesse
contexto sociotecnológico específico, o que esclarece muito a respeito,
também, de quem as estava produzindo e em quais condições; quem as estava
consumindo e em quais condições.
Literatura digital brasileira: duas leituras
Eu gostaria de mais uma vez retomar o catálogo da exposição Arte Suporte
Computador (1997), para iniciar a discussão a respeito da obra de Giselle
Beiguelman, O livro depois do livro25:
Faltam uns mil dias para o terceiro milênio e nós, da Casa das Rosas, achamos
que muito pouco foi feito. Um ano em 1950 equivale a uma semana agora.
Mesmo assim, está um saco entrar na rede e não pescar nada. […] Não tem
o mínimo charme pescar um texto de Shakespeare. É o momento de se tornar
criativo ou a rede se transforma num parque de diversão idiota ou numa
terapia de grupo medíocre. É necessário utilizar a linguagem deste momento.
Precisamos de hipertextos GENIAIS. Grandes VOOS (Aguilar, 1997: n.p.).
Esse excerto talvez ajude a completar o desenho do contexto de produção
dessa obra, ou seja, talvez ajude a deslindar aspectos e imaginários que
circulavam, à época, a respeito do computador, da internet e do lugar que
ambos começavam a ocupar no contexto de produção e de reflexão sobre a
Kbps, ou Mbps”. (Disponível em: https://cidadaonarede.nic.br/pt/videos/largura-de-banda.)
Atualmente, a largura de banda média da internet fixa brasileira é de 55 Mbps, cerca de 1.500 vezes
maior.
25 Documentação disponível em: https://www.observatorioldigital.ufscar.br/repositorio-da-literatura-
digital-brasileira/o-livro-depois-do-livro/.
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arte. Alguns aspectos merecem ser retidos do severo diagnóstico que, em
1996, Aguilar constrói a respeito do tema, no “Manifesto” que assina, apenso
ao catálogo da já referida exposição. O primeiro deles diz respeito ao fato de
que o computador e a internet, a despeito de todos os discursos e imaginários
utópicos que se construíram sobre eles, não tinham sido ainda, ao menos na
perspectiva de Aguilar, apropriados de forma efetivamente criativa. E é
possível identificar, na crítica proferida pelo autor, os usos mais populares de
ambos, ao longo da cada de 90: os jogos e os bate-papos, além de,
evidentemente, uma função arquivística impulsionada sobretudo pelos
grandes projetos de digitalização textual que, embora tendo se iniciado antes,
ganharam especial fôlego entre meados dos anos 90 e início dos anos 2000.
Pode-se ler a obra de Beiguelman, surgida em 1999, apenas três anos
após a redação do “Manifesto” que compõe o catálogo da exposição da Casa
das Rosas, como uma resposta às queixas de Aguilar, porque se trata, entre
outras coisas, de um esforço de mapeamento e de compreensão do que de
mais criativo artistas, designers e escritores de diversos países estavam
fazendo com as efetivas possibilidades que se abriam no momento em que
se popularizava a internet ao redor do mundo. No entanto, uma vez que a
obra em questão quer “criar sentido, ao invés de distribuir conteúdo”
(Beiguelman, 2003: p. 78),26 ela própria se configura como um experimento
ensaístico/ensaio experimental que mobiliza, na sua composição, os recursos
técnico-artísticos de cuja falta Aguilar se ressentia no panorama das artes
tecnológicas da época.
A obra surgiu em 1999 embora estivesse em construção desde 1996
, subvencionada por uma Bolsa Vitae de Artes, e foi concebida para a
exposição Ex Libris/Home Page, realizada no Paço das Artes, com curadoria
da própria Giselle Beiguelman, em parceria com Sergio Pizzoli. Compôs-se
originalmente de um site que foi exposto na mostra Net_Condition,27 no ZKM
Museum, entre 23 de setembro de 1999 e 27 de fevereiro de 2000. A
designação “site” aparece na própria obra, em espaço designado pela autora
como “colofon”,28 no qual ela outras informações a respeito da sua
motivação e natureza:
O Livro depois do Livro pensa
o impacto da Internet
na literatura e nas formas de leitura.
26 A citação replica uma análise de Beiguelman a respeito da obra de Rafael Marchetti e Raquel Rennó,
Influenza. Informações sobre a obra disponíveis em: http://www.influenza.etc.br/work/.
27 Mais informações disponíveis em: https://zkm.de/en/exhibition/1999/09/netcondition.
28 Disponível em: https://www.desvirtual.com/thebook/portugues/colofon.htm.
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Este site é um diário de bordo de pesquisa.
Aqui não se usam imagens figurativas.
Apenas textos.
Leva-se ao limite dois pressupostos:
A Internet não passa de um grande texto
Literatura é a arte que problematiza
esteticamente o texto por meio
de imagens invisíveis.
Em 2003, surgiu o livro impresso homônimo, que estabelece evidente diálogo
com a obra digital. Em um movimento especular, o livro impresso assume
uma metalinguagem proveniente da computação para nomear as suas
diferentes seções: “Label”, “Requisitos mínimos”, “Instalação”,
“Configuração”, “Reiniciar”, “Recursos avançados”, “Sair”, “Leia_me.txt” e
“Código fonte”, enquanto a obra digital mobiliza um vocabulário
proveniente do universo do livro impresso para orientar o leitor na
navegação:
Figura 2. Beiguelmen, Giselle. Captura de tela de O livro depois do livro, 1999.29
Não é meu objetivo, aqui, comparar as duas formalizações, mas não deixa de
ser tentador pensar de que maneira tal confronto tensiona aquele paradigma
que, de resto, tenho tentado desconstruir a expensas da apropriação do
conceito de mídium debrayniano (Debray, 1993, 2000) de “mesmo
conteúdo em suporte diferente”, uma vez que não é em absoluto disso que
29 Imagem produzida pela autora a partir da página:
https://www.desvirtual.com/thebook/portugues/whatwhere.htm.
Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 57 ISSN 2422-5932
se trata. Nesse caso, as reflexões e análises empreendidas pela autora em um
e outro objeto assumem formas tão distintas (e, por conseguinte, eles são
fruídos e apropriados de maneiras tão distintas pelo leitor) a ponto de lermos
a obra digital como uma obra de net art/literatura digital e o livro como um…
livro, cujos design e projeto gráfico peculiares ainda não fazem dele um livro
de artista, o que lhe garantiria recepção crítica e estatuto institucional
específicos, de obra de arte.
A designação do site-obra como um “diário de bordo de pesquisa” é
interessante quando sabemos que a autora, doutora em História, assume ser
praticamente autodidata nos temas relativos às mídias digitais, aprendendo
na prática sobre o assunto, ao mesmo tempo que aprendia, também na
prática, o que seria a internet no Brasil, durante a temporada em que ajudou
a implantar o UOL, a partir de 1995. Foi a essa altura que comprou o seu
primeiro computador e iniciou suas primeiras experimentações “artísticas”,
segundo ela, produzindo o que ela acreditava ser poesia concreta (cf. Leão,
2009: n.p.). Foi a essa altura, também, que começou a produzir a obra sobre
a qual estamos refletindo ou começou, talvez seja mais adequado
considerar, o processo de elaboração dessa obra. O que vemos na obra em
questão, parece-me, é o processo de construção de um paideuma pessoal: a
seleção de um repertório teórico e artístico que fornecerá à autora as
possibilidades de construção de pressupostos e métodos que passarão a ser
empregados e desenvolvidos ao longo de sua trajetória posterior de artista,
de crítica de cultura, de docente e de pesquisadora universitária. Trata-se,
enfim, e isso é possível de averiguar retrospectivamente, do início de um
projeto artístico e crítico bastante coerente.
A questão é que a construção desse paideuma se de forma ajustada
às demandas do contexto em que é produzido: na velocidade de pesquisa e
de contato com essa infinidade de referências que se torna possível pela
conectividade em rede e pela natureza de muitas das obras e projetos que são
ali arrolados e comentados, uma vez que eles estavam disponíveis
digitalmente. Mas é na maneira como se apresenta esse processo ao leitor que
o ajustamento ao então contexto material e simbólico emergente da
conectividade em rede fica mais evidente. Como já antecipei, trata-se de uma
obra nato-digital que pressupõe conexão à internet para a sua fruição e, sim,
a leitura do livro impresso homônimo, apesar de mais “confortável” para
leitores habituados ao códice, é difícil na medida em que as referências a sites
e projetos online fica prejudicada. Trata-se de uma obra multimodal que,
diferentemente de outras obras do período, aposta menos na
multimodalidade do que na hipertextualidade, e isso provavelmente se
relaciona com o seu teor, que identificaríamos como ensaístico, embora um
ensaísmo construído em conjunção com as possibilidades da
multimodalidade e assumindo os riscos da hipertextualidade para a
Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 58 ISSN 2422-5932
progressão argumentativa. A descrição minuciosa da obra não se realizaria
sem tropeços, justamente graças à exploração da hipertextualidade, que
conduz o leitor a esse “jardim dos caminhos que se bifurcam” à exaustão,
mas tentemos pelo menos apontar algumas estratégias de composição.
Atualmente a obra se encontra hospedada no site da própria artista30
e é etiquetada como “net art/mobile art”; ali encontramos a seguinte
descrição:
O livro depois do livro é um ensaio hipertextual e visual sobre ciberliteratura e
net_reading/writing. Seu foco principal são as narrativas não lineares, que
reconfiguram a relação literatura/livro a partir da própria noção de volume.
Obras que proporcionam à linguagem de programação uma apreciação
textual, criações que recorrem a procedimentos videográficos na construção
literária e jogam com a passividade e a participação do leitor.
O livro depois do livro foi viabilizado por uma bolsa da Fundação Vitae e foi
lançado na NET_Condition (ZKM, 1999). Foi exibido e premiado várias
vezes em todo o mundo e é considerado um clássico da net 1.0. 31
Ali também encontramos a informação de que a obra faz parte do acervo do
MAC (Museu de Arte Contemporânea da USP).32 Ao acessar a coleção
disponibilizada online pelo site do museu, obtemos a informação de que o
site foi doado à instituição pela própria autora em 2015, e o link ali presente
é o mesmo e remete à página da autora.
Seria possível refletir sobre o lugar ocupado por Giselle Beiguelman nas
complexas relações que se estabelecem entre literatura digital e arte digital,
no que diz respeito às vinculações institucionais e ao reconhecimento no
campo. Não se trata de forçar uma vinculação da artista ao campo literário
o que se poderia recusar, inclusive pelo fato de que ela própria nunca tenha
reclamado tal vínculo para si. Por outro lado, que se questionar se tal
vinculação não seria possível e também desejada pela autora se o campo
literário tivesse meios (metalinguagem, paradigmas de análise, instituições) de
receber criticamente uma obra como essa, cuja temática, como se evidencia
30 Disponível em: https://www.desvirtual.com.
31 No original em inglês: The Book After the Book is a hypertextual and visual essay about cyberliterature and
net_reading/writing. Its main focus is non-linear narratives, which reconfigure the literature/book relationship starting
from the very notion of volume. Works that provide programming language a textual appraisal, creations that resort to
video graphics procedures in literary construction and play on the passivity and participation of the reader. The Book after
the Book was made possible by a Fundação Vitae grant and was launched at NET_Condition (ZKM, 1999). It was
exhibited and awarded many times all over the world and it is considered a net 1.0 classic. Disponível em:
https://www.desvirtual.com/project/the-book-after-the-book/
32 Ver: Giselle Beiguelman. The Book after the book, 1999. In: MAC USP. Disponível em:
https://acervo.mac.usp.br/acervo/index.php/Detail/objects/23381.
Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 59 ISSN 2422-5932
pela própria descrição da obra no site da artista, em tudo se relaciona com
temáticas do campo em questão.
Voltando à obra, a página de abertura é bastante sóbria para os padrões
da época: trata-se de três quadrados preto, cinza e branco sobrepostos.
No interior do quadrado branco, o título da obra se movimenta de modo que
a sentença “O livro depois do livro” se apresente também do avesso (ou de
trás para a frente, dependendo da leitura que se faça), simulando o dobrar-se
da sentença sobre si mesma, o que redunda, agora a expensas da cinestesia, o
que já aparecera na página com informações sobre a obra, no site da autora:
o fato de que a obra tematiza as formas como cultura impressa (sobretudo o
universo que, dentro dela, refere-se ao livro) e cultura digital estão imbricadas,
em uma contaminação e tematização mútuas, nos projetos que então serão
expostos e discutidos ao longo da obra. É também uma outra forma de
colocar em evidência um dos significados possíveis do título da obra, aquele
que admite que, mesmo depois do tempo do livro, da cultura impressa,
metonimicamente falando, o que haverá ainda é o livro, com as diferenças
que a autora se dedicará a discutir, obviamente.
O link disponível nessa página leva a uma outra que faz as vezes de uma
contracapa, em que símbolos e algumas letras constroem uma imagem que,
enfim, não é uma imagem; assim como constroem uma escrita que não é uma
escrita: mais uma contaminação mútua a redundar o objetivo central da obra,
como já mencionei antes. Clicando-se em qualquer ponto dessa página, tem-
se acesso a uma lista de links que emulam um índice. É a partir daí que ao
leitor é dada a possibilidade de criar seus percursos individuais pelas trilhas
hipertextuais que lhes são oferecidas pela obra. Trilhas pontuadas por páginas
em que a multimodalidade, limitada à exploração de fontes, cores e
movimento, está presente como, de resto, a autora trata de adiantar ao
leitor quando enuncia que aqui não se usam imagens figurativas”. Tais trilhas
conduzem o leitor a outros pontos no interior da obra mesma ou o levam
(levavam) a obras, projetos, sites e textos que compõem aquele paideuma que
vemos sendo construído diante dos nossos olhos. Obras, projetos, sites e
textos que são testemunho de um momento muito específico da internet,
anterior ao que depois se veio designar popularmente como “internet 2.0”;
ou seria melhor dizer que hoje são rastros daquela internet? Explico-me.
Entre os links que remetem o leitor a sites externos, pouquíssimos ainda
funcionam: a grande maioria deles, ao serem acessados, retorna a mensagem
mais temida pelos estudiosos de literatura digital (404 Not Found), outros
tantos remetem a conteúdos aleatórios, alguns sequer são localizados. Ou
seja, resta ao leitor, se quiser saber do que se tratava, buscar informações em
outros locais a respeito dessas obras e sites aos quais Giselle Beiguelman nos
conduzia originalmente, nesse seu movimento de compartilhar conosco a
construção de seu paideuma. Essa indisponibilidade de grande parte dos
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conteúdos externos linkados à obra me ensejo para uma reflexão que diz
respeito, evidentemente, à obsolescência que ronda as obras de literatura
digital não só no Brasil, em qualquer latitude e que, à época em que vem
à luz a obra de Beiguelman, não estava absolutamente em questão,
provavelmente porque acreditava-se, mesmo, que a então propalada
“imaterialidade” do digital seria garantia de perpetuação infinita dos dados.
Mas para além disso, coloca questões a respeito i) da natureza distinta dessa
obra no momento em que ela foi criada e hoje, quando é acessada, e ii) de
como se constitui isso que estou aqui chamando de paideuma no contexto
da digitalidade.
Sobre o primeiro ponto, gostaria de retomar o que antes mencionei a
respeito da relação entre livro impresso e obra digital, uma vez que acredito
que valha para o caso aqui em tela. Antes, tinha mencionado como a inscrição
material do livro impresso à obra de Giselle Beiguelman um lugar no
campo totalmente distinto daquele ocupado pela obra digital. Quero
argumentar, agora, que os links quebrados da obra, acessada em 2025,
portanto 25 anos após a sua concepção, interferem não apenas na sua
legibilidade, por motivos óbvios, mas também na maneira como essa obra
entra em um repertório de net art e, também, de literatura digital. Isso porque,
ao não termos mais acesso a essa obra da forma como ela foi concebida, com
seus links externos em pleno funcionamento, dilui-se um de seus apelos, que
é o de se configurar como uma espécie de browser daquilo que era mais
inovador em termos de pensamento e experimento realizados na fronteira da
literatura (do livro, da linguagem) com as tecnologias.
Retomo aqui a ideia de “browser” em seus dois significados: aquele que
remonta ao século XV, como esclarece a própria autora em outro texto (2005:
p. 77), e que “quer dizer [to browser] ler descompromissadamente, folhear,
entrar em lojas para espiar, beliscar comida, olhar para rias coisas
dispersamente, procurando algo para se concentrar”; e aquele com o qual o
vocábulo efetivamente se popularizou, para nomear os motores e serviços de
busca na internet. A obra de Beiguelman é (foi, de acordo com a minha
argumentação, aqui) um pouco das duas coisas: um convite a flanar pelo
universo até então pouco conhecido da internet, a partir dos seus lugares mais
recônditos, porque experimentais, questionadores, instigantes e um misto de
arquivo de sugestões e serviço de orientação na rede.33 Ou seja, uma obra que
talvez tivesse no horizonte tanto aquele usuário chateado por pescar
Shakespeare na rede, quanto aquele outro que tinha preguiça de acessá-la
(Aguilar, 1997).
33 Sempre é bom lembrar que o primeiro buscador (tecnicamente chamado de “web crawler”), Wandex,
é de 1993. É com o Altavista, de 1995, que o serviço começa a se popularizar; e o hoje onipresente
Google foi lançado em 1999.
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Não que a obra de Beiguelman tenha se limitado a essas funções
práticas quando de sua criação, mas é inegável que aquele ambiente de difuso
desnorteamento diante da internet, que então começava a se popularizar, está
inscrito, de certa maneira. O que aponta, então, perdidos os links e,
portanto, essas funções de browser nos dois sentidos que antes mencionei,
para o fato de que a obra constrói para si um lugar mais aprofundadamente
de testemunho de uma época e de um processo ou, talvez fosse mais
pertinente dizer, de um processo profundamente arraigado em uma época.
Explico, agora entrando no segundo ponto que antes enunciei: a construção
do paideuma do qual Beiguelman nos notícia está profundamente
atravessado e creio que estava desde a sua concepção, mesmo que isso, à
época, não se colocasse de maneira evidente pela profunda instabilidade e
provisoriedade com as quais nos deparamos em tempos de digitalização da
cultura. Ainda que a autora não supusesse, no momento de lançamento da
sua obra, que 25 anos depois ela estaria tão profundamente modificada
graças ao fato de as obras e sites a que se refere não existirem mais a não ser
como documentação, na melhor das hipóteses , tal condição já estava posta,
impressa nas condições materiais de existência da obra, desde 1999. Ler a
obra de Beiguelman hoje, então, é ler o processo de constituição de seu
paideuma artístico, o que se pode confirmar pelas suas obras e reflexões
críticas posteriores, mas é também ler o processo de modificação da ideia
mesma de paideuma (e de cânone, e de repertório) em um momento em que
a obsolescência se coloca não apenas como uma fatalidade a atingir as obras
de arte e de literatura digitais, mas como uma característica que precisa
começar a ser avaliada como atributo, como aspecto constitutivo do qual não
se pode escapar.
O impulso arquivístico, que paralelamente se como um esforço de
constituição de repertório (Even-Zohar, 2017), que antes tratei como o
estabelecimento de um paideuma, no caso de Giselle Beiguelman, também
aparece no ambicioso e igualmente pioneiro trabalho de Regina Célia Pinto,
o Museu do essencial e do além disso,34 que, segundo Jorge Luiz Antonio (2007, p.
28-29), tem a sua gênese na Revista Arte Online, uma publicação eletrônica
editada no Rio de Janeiro pela autora e por Paulo Villela, entre 2000 e 2002.35
34 Disponível em: https://archive.the-next.eliterature.org/museum-of-the-
essential/museu/reformas/corte1.htm
35 No editorial, no quinto número da revista, -se: “ARTE onLINE, revista trimestral, pretende ser
um veículo de informação, pesquisa e debate sobre Arte, Ciência e Tecnologia. Gostaríamos de
acrescentar que a expressão onLINE não implica, neste caso, em sua atualização diária mas em estar
sempre antenada para as novidades nas áreas em que atuamos. Apreciaremos a colaboração efetiva de
todos que se interessam por esses assuntos. Aos poucos pretendemos ir formando uma equipe que
expresse conceitos novos e criativos sobre essas relações que nos fascinam e que se ampliaram muito
depois da revolução da informática e das comunicações. Enviem-nos seus textos para que possamos
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Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 62 ISSN 2422-5932
Trata-se de um site programado em Flash, a que hoje se tem acesso
graças ao emulador Ruffle36 e ao trabalho de restauração realizado pela equipe
do Electronic Literature Lab, que, por meio do projeto NEXT,37 tem
recolocado em circulação muitas obras digitais produzidas em softwares hoje
obsoletos, por meio de adaptações e emulações. Os arquivos-fonte do
próprio site e das obras que constituem o projeto foram doados ao
Laboratório pela autora em 2019, quando os principais navegadores não
mais permitiam que as páginas do site fossem abertas, a não ser com esforço
considerável.
O trabalho curatorial de Regina Célia Pinto se a ver na arquitetura
de um site projetado para, pela remissão a um espaço físico que remete a um
museu, paradoxalmente dele se distanciar em muitos aspectos, sobretudo
pelo fato de que a sua existência não é “física”, pelo menos não no sentido
que admitimos quando falamos de construções, imóveis e espaços
arquitetônicos que paradigmaticamente costumam abrigar os museus e as
obras que ali se reúnem e se expõem.
Figura 3. Pinto, Regina Célia. Captura de tela de janela pop-up38, Museu do
essencial e do além disso, 2001.
publicá-los.” (Captura de tela do dia de dezembro de 2001, realizada pela Wayback Machine.
Disponível em:
https://web.archive.org/web/20011201182830/http://www.arteonline.f2s.com:80/artonline/cinco.ht
m.) Atente-se para a necessidade de esclarecimento a respeito do sentido que a expressão “online”
assumia nesse caso, provavelmente porque era utilizada, nessa altura, apenas pelos jornais de grande
circulação, que começavam a ter versões digitais.
36 Disponível em: https://ruffle.rs/.
37 Trata-se de um projeto coordenado por Dene Grigar, que é diretora e fundadora do Electronic
Literature Lab, e sediado na Washington State University Vancouver. Mais informações disponíveis em:
https://dtc-wsuv.org/electronic-literature-lab/index.html.
38 Imagem produzida pela autora a partir do Museu do essencial e do além disso. Disponível em:
https://archive.the-next.eliterature.org/museum-of-the-essential/museu/reformas/corte1.htm.
Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 63 ISSN 2422-5932
A imagem acima é a representação dessa arquitetura projetada pela artista, à
qual o leitor tem acesso a partir da página de entrada da obra. Movendo-se
(leia-se clicando) pelos andares, tem-se acesso a distintas galerias, bibliotecas
e projetos que abrigam obras de arte eletrônica e de poesia digital
encomendadas para o projeto ou de autoria de Regina Célia Pinto, além de
textos críticos a respeito das obras, enviados por colaboradores ao longo dos
anos em que o projeto esteve ativo. Uma grande diversidade de obras,
autores, textos, em distintos formatos e gêneros e inseridos no site em
diferentes momentos, assim como a remissão a blogs e a newsletters, coloca
o leitor diante da complexidade da produção digital que foi criada no Brasil
durante a primeira década dos anos 200039 e se constitui como um importante
documento a respeito da rede de sociabilidade artística, que se consolidava a
partir das possibilidades da comunicação em rede, e a respeito das
disposições de troca, partilha e coletividade que se tornavam possíveis graças
a ela.
Para compreender melhor tais disposições, que fundamentam, então,
tanto o projeto de Regina Célia Pinto como também uma parcela do
pensamento crítico que se produzia a respeito da internet e de suas
possibilidades, no início dos anos 2000, é interessante retomar as proposições
da idealizadora do projeto:
[nas comunidades virtuais] todos parecem estar interessados num trabalho
comum e solitário alternativamente, no saber acumulado e redistribuído, no
respeito mútuo e na generosidade recíproca que a educação ensina. Sendo
assim, torna-se fácil entender o sucesso de um projeto como o “Museu do
essencial e do além disso”: projeto que não está ligado a nenhuma instituição
e também não tem apoio financeiro ou patrocínio de quem quer que seja,
elaborado num computador doméstico na cidade do Rio de Janeiro mas que
possui um modelo digital dinâmico, um permanente vir a ser e, por isso
mesmo recebe contribuições de diferentes latitudes e longitudes desta
geografia sem fronteiras criada pelas tecnologias da informação. Um mundo
que parece estar elegendo as comunidades virtuais como uma possível aposta
num futuro melhor.40
A ideia de comunidades virtuais parecia ser, no início dos anos 2000, o que
daria o suporte material para a consolidação da “inteligência coletiva”,
39 A produção mais recente a que se pode ter acesso, atualmente, no site, é de 2009, o que permite aferir
que o “museu” de Regina Célia Pinto foi-se constituindo ao longo dos anos.
40 Disponível em: https://archive.the-next.eliterature.org/museum-of-the-
essential/museu/ensaios/ensaiosantigos/regina3.htm.
Rocha “Das técnicas e dos imaginários…” Revista de estudios literarios latinoamericanos
Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 64 ISSN 2422-5932
apregoada por Pierre Lévy em seu livro de 1994. Se é importante
compreender o seu significado, mais importante é compreender o cenário
sócio-histórico e tecnológico que lhe deu ensejo. De acordo com Salgado e
Boschi (2023), amparadas em Milton Santos (2000), duas dimensões
semânticas a disputar a compreensão e a representação que se constrói acerca
da tecnosfera contemporânea, caracterizada pela técnica algorítmica, ou seja,
a “conjugação de protocolos (instruções hiperprecisas codificadas numa
linguagem numérica) com fins de propagação (dos fluxos de informação
gerados)” (Salgado e Boschi, 2023: 6). Protocolos e propagação: eis a dupla
face da técnica algorítmica que fundamenta a distinção entre cibercultura e
cultura digital, proposta pelas autoras, em um esforço de compreender como
se dá a constituição da psicoesfera contemporânea nesse cenário de disputas
também semânticas. Segundo elas (2023: 7):
Cibercultura se materializa em mídiums digitais cujo desenvolvimento enfatiza
o aspecto dos protocolos. Ela nasce da cibernética, atividade interdisciplinar
que desde os anos 1950 elabora tecnologias de controle de fluxos de pessoas
e de informação e que está no nascimento desse conjunto de dispositivos […]
tem a ver, assim, com tecnologias como login e senha […] antivírus, […]
licenças de uso de softwares proprietários, […] com tecnologias de fechar
grupos selecionando membros ou bloqueando usuários. É uma dimensão da
psicoesfera que põe em relevo tecnologias orientadas pela semântica de
segurança e proteção – tecnologias de seleção, filtragem, personalização. […]
Cultura digital se relaciona ao desenvolvimento de mídiums que enfatizam
tecnologias voltadas à propagabilidade. É nativamente digital, nasce nos anos
1980 com a cultura hacker universitária e se desdobra em movimentos como
os do software de código aberto, a chamada ciência livre, as plataformas de
partilha e a bandeira criptopunk, […] com tutoriais que nos ensinam de tudo,
com o entendimento de que o próprio usuário deve customizar
funcionalidades conforme suas necessidades. […] É uma dimensão da
psicoesfera que enfatiza tecnologias orientadas pela semântica do acesso e da
partilha – tecnologias de compatibilização, difusão e troca.
A citação é longa, mas esclarece alguns aspectos que são cruciais para a
compreensão da proposta idealizada por Regina Célia Pinto, assim como para
a compreensão dos seus paradoxos. Fica evidente, pela distinção proposta
por Salgado e Boschi (2023) e pela própria descrição das motivações que
ensejam a criação do projeto, dadas pela sua autora na citação reproduzida
antes, que o Museu do essencial e do além disso alia-se a uma compreensão de que
os dispositivos digitais deveriam engendrar disposições de partilha e de
abertura que possibilitariam a formação de comunidades virtuais a sustentar
a emergência da inteligência coletiva preconizada por Pierre Lévy. Daí o
esforço da autora de sublinhar o contexto de produção do seu museu,
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alinhado à cultura do do it yourself, descrita por Barbrook e Cameron (2018)
como um dos pilares de sustentação do que eles designaram como “ideologia
californiana”. Daí, também, a configuração do Museu como um espaço aberto
a colaborações de autores de diversos países e línguas e de distintas
orientações artísticas, ligados sempre pelo impulso de experimentação com a
tecnologia digital e orientados pelo espírito de compartilhamento de
realizações artísticas e ideias. Um projeto que responderia, então,
criticamente, aos processos perniciosos da globalização, “um mecanismo
economicamente passivo e politicamente ingovernável” (Pinto apud Clarke,
2010: 22-23), colocado em movimento por, entre outras coisas, as
tecnologias digitais de difusão de informação. Esse posicionamento crítico se
constrói, no entanto, a partir de um movimento que à primeira vista parece
paradoxal, que é o de reconhecer, também, o potencial afirmativo do
fenômeno da globalização. Na análise do Museu que Clarke (2010: 22-23,
tradução minha) empreende, esse aparente paradoxo se explica:
Essa “potência afirmativa” pode ser realizada através do estabelecimento de
comunidades virtuais, que, dentro das suas estruturas, contêm o potencial
para projetos realizados por apenas um indivíduo em qualquer parte do
mundo, mas que podem ser infinitamente ligados a trabalhos colaborativos
em escala internacional […]. Essa troca de experiências artísticas implica a
transmissão recíproca de conhecimentos e o respeito mútuo entre
comunidades diversas.41
Independentemente do fato de que, na atualidade, tal avaliação soe ingênua
diante dos desdobramentos que resultaram naquilo que Salazar e Boschi
(2023) designam como hegemonia da cibercultura, em detrimento da cultura
digital, ela parece bem representar o espírito da época em que foi produzida:
uma época em que a tecnologia digital e tudo o que ela viria representar,
subsequentemente oferecia na mesma medida possibilidades e desafios.
Essa é a mesma perspectiva que anima os livros de Pierre Lévy, produzidos
na última década do século XX, por exemplo; assim como é o que anima as
reflexões de Arlindo Machado, nos jornais de grande circulação,
mencionadas antes neste texto.
Um outro aspecto a ser considerado é o fato de que o Museu não é
apenas uma tentativa de estabelecer uma comunidade de partilha de
interesses comuns, senão que é, também, o resultado de comunidades que já
41 No original em inglês: This ‘affirmative potency’ can potentially accomplished by the establishment of virtual
communities, which, within their structures, hold the potential for projects realised by only one individual in any part of the
world, but which may be infinitely connected to collaborative works on an international scale […] This exchange of artistic
experiences entails the reciprocal transmission of knowledge, and mutual respect between diverse communities(Clarke,
2010: 22-23).
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Número 18 / Julio 2025 / pp. 34-73 66 ISSN 2422-5932
estavam estabelecidas naquele momento, a partir de expedientes tornados
possíveis pela tecnologia digital, sobretudo pela comunicação em rede, pela
internet e, de posse dessa perspectiva, a sensação de ingenuidade a respeito
da confiança na possibilidade de existência de comunidades de partilha e
inteligência coletiva se dissipa.
Em tempos como os atuais, em que as redes sociais apenas emulam
e muito mal, embora soem convincentes as possibilidades comunitárias e a
inteligência coletiva que foi idealizada nos primeiros momentos da internet,
talvez seja importante explicar que a construção do Museu foi em grande parte
possível graças à comunicação em rede que se dava a partir de listas de emails
que agregavam extensas comunidades de artistas, especialistas e interessados
em geral em um diálogo horizontal com base em temas de interesse comum.
A citação abaixo é uma mensagem de Regina Célia Pinto em uma dessas
listas, a Nettime,42 no dia 21 de setembro de 2003, em que se pode perceber
a natureza essencialmente instável do Museu, graças às recorrentes novas
inserções de obras e reconfigurações de espaços, ao mesmo tempo que se
pode apreender um dos modos pelos quais a sua curadora buscava novas
colaborações a fim de ampliar o seu acervo. Em outras mensagens enviadas
à mesma lista, em outras datas, ainda se podem ler breves reflexões a respeito
da natureza e das motivações43 do museu, bem como explicações acerca de
novas inserções44 ou de modificações da sua estrutura.45
Novidades no Museu do Essencial e do Além Disso
PRIMAVERA (Hemisfério Sul), OUTONO (Hemisfério Norte) - 2003
Novo pavimento: Terraço com jardim, restaurante*, elevador panorâmico,
administração e banheiros*
* Envie sua receita (imagem, texto, poesia, código, multimídia) para esse
grande banquete cultural e colaborativo até 10 de outubro de 2003.
*Se você gostou do nosso Projeto WC, envie-nos o seu banheiro para fazer
parte da nossa coleção.
Os arquivos não devem ser maiores do que 200 KB.
Galeria Paris - Rio de Janeiro (9137 Km) > “work in progress” - 7, 240
42 A Nettime surgiu em 1995 e segue até hoje em funcionamento. Segundo a sua página oficial: “não é
apenas uma lista de discussão, mas um esforço para formular um discurso internacional em rede que não
promova uma euforia dominante (para vender produtos) nem continuidade ao pessimismo cínico,
espalhado por jornalistas e intelectuais da ‘velha’ mídia que generalizam sobre ‘novos’ meios de
comunicação sem uma compreensão clara dos seus aspectos de comunicação. Produzimos e
continuaremos a produzir livros, leitores e sites em vários idiomas para que uma crítica ‘imanente’ da
rede circule tanto online quanto offline.” Disponível em: https://nettime.org/info.html. Tradução
minha.
43 Disponível em: https://nettime.org/Lists-Archives/nettime-lat-0210/msg00076.html.
44 Disponível em: https://nettime.org/Lists-Archives/nettime-lat-0306/msg00070.html.
45 Disponível em: https://nettime.org/Lists-Archives/nettime-lat-0309/msg00036.html.
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metros prontos!
Novidades na Biblioteca, livros > “Haikai” e “Erótica” por Marcelo
Frazão.
Novidades na galeria Fronteiras entre net.art - web.art e arte hoje:
“Museus para novatos” e “Metamorfose para novatos”, por Manik, Sérvia;
“Bottles” (Garrafas) por Ricardo Báez-Duarte (Venezuela)
Novidades na galeria Poesia Digital: Fernando Fiorese - Brasil - MG,
Lucio Agra - Brasil - SP, Michael Szpakowski - Inglaterra, Suely
Rodriguez - Brasil - RN
Seção: CDs de Arte e Poesia - Hélio Oiticica (Brasil).46
Voltando ao Museu, agora com essas questões em mente, é possível
compreender o sentido da multiplicidade de perspectivas, linguagens, línguas
e formatos que se organizam sob a representação arquitetônica de uma
instituição museográfica paradigmática, com seus andares, salas, galerias,
banheiros, cafés, administração etc. Uma tentativa, talvez, de organizar
cartesianamente não essa multiplicidade, mas também esse misto de
possibilidades e desafios representativos da época, bem como de emular uma
materialidade física para esse conjunto complexo de dados, em um momento
em que ainda não eram comuns (sequer possíveis) interfaces e projetos de
visualização mais complexos. Uma tentativa, enfim, de tornar minimamente
familiar aquela grande quantidade de projetos experimentais ali reunidos.
Essa multiplicidade e a sua representação em uma interface tão peculiar,
unidas ao reconhecimento do impulso tateante que anima o Museu, me
fizeram optar por tratá-lo como uma obra íntegra na sua proposição de
reunião de obras diversas, não (apenas) como um
repositório/arquivo/biblioteca. Parece-me que essa também é a
compreensão, embora não explicitada, do Electronic Literature Lab,
responsável pela recuperação do Museu; se assim não fosse, talvez se tivesse
trabalhado na recuperação de cada uma das obras que o compõem,
organizando-as em outro espaço, talvez até mesmo incorporando-as ao ELO
Repository. Regina Célia Pinto (s.d.) reflete, em um artigo abrigado no
interior do Museu, sobre essa espécie de dupla existência do seu projeto, a
um só tempo “interface criativa” e “arquitetura de informação”:
O projeto consiste na criação de arquiteturas virtuais: um museu com suas
bibliotecas e galerias, as quais não possuem correspondentes no mundo real.
É muito comum vermos um museu ou uma biblioteca real possuírem seus
“sites” na “web”, mas não é muito comum a situação na qual se desenvolve
este nosso “museu”. Um museu que não existe e cuja arquitetura e obras são
46 Disponível em: https://nettime.org/Lists-Archives/nettime-lat-0309/msg00072.html.
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formadas por algarismos 01010101. Será ele apenas um espaço eletrônico
onde trafegam bits e bytes?
O museu surgiu como um “work in progress”: arquitetura de informação
então?… Mas também como um imaginário pixel – prédio de dois andares e
um porão… Seu prédio a qualquer momento pode ter seu projeto
arquitetônico alterado, seja construindo-se mais um andar ou alterando-se o
aspecto de sua forma projeto de Niemeyer, constelação, estação espacial,
gravura de Piranesi: interface criativa?… O nosso conceito de museu é o de
uma estrutura aberta, na qual a informação é dispersa numa série de espaços;
uma máquina capaz de se desenvolver infinitamente em todas as direções.47
Fica patente, no fragmento acima reproduzido, a consciência de Regina Célia
Pinto a respeito das especificidades do seu projeto, seja comparado a um
arquivo (digital ou físico), seja comparado a um museu (digital ou físico) e
essa especificidade reside sobretudo na ideia de uma arquitetura aberta:
expansível, no sentido de que pode ser remodelada a qualquer momento, mas
também no sentido de que pode abrigar os mais distintos objetos que, por
conseguinte, reconfiguram o espaço digital que os abriga e isso é muito
condizente com um tipo de arte e de literatura que, talvez como nunca antes,
estão submetidas às alterações da tecnologia. Seria redundante retomar as
propriedades dos novos meios, de acordo com Manovich, mas percebe-se
que Regina Célia Pinto estava bem ciente (teórica ou pragmaticamente) de
suas especificidades quando da idealização do Museu, o que, paradoxalmente,
não impediu que ele sofresse com a obsolescência do software no qual ele e
muitas das obras que abriga foram construídos, o Flash.48
Ler e analisar cada uma das obras que compõem o Museu será trabalho
para outra ocasião, assim como ainda merece empenho o desenvolvimento
de uma análise que, partindo da individualidade das obras, apreenda o sentido
que organiza o impulso curatorial da autora. E é motivo de surpresa que algo
assim ainda não tenha sido feito, dada a importância do projeto para a história
tanto da literatura quanto das artes digitais, no Brasil.
E este é um aspecto que merece atenção, no caso da reflexão que aqui
empreendo: a quase inexistência de fortuna crítica a respeito do Museu do
essencial e do além disso,49 algo de que não padece, por exemplo, o trabalho de
47 Disponível em: https://nettime.org/Lists-Archives/nettime-lat-0210/msg00076.html.
48 Em entrevista concedida por email, a autora, quando questionada a respeito de suas preocupações
com a obsolescência e a preservação do Museu, na época de sua idealização, afirmou que não pensava
sobre isso, o que, segundo ela, teria garantido um experimentalismo exploratório que de outro modo
teria sido impossível.
49 O que encontrei, ao longo da pesquisa, foi apenas o capítulo de um livro publicado em 2010, na
Inglaterra (Clarke, 2010) e que, lamentavelmente, incorre em erro ao afirmar que o Museu foi criado
em 1992; além disso, a apresentação da própria idealizadora do projeto disponível no interior do
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Giselle Beiguelman anteriormente discutido, embora se possam elaborar
hipóteses a respeito disso. Uma delas estaria relacionada com o fato de que a
obra, reunindo outras obras (e links, e textos etc.) e prescindindo de um
direcionamento temático, tenha tido uma circulação mais restrita. No caso de
Beiguelman, para discutir contrastivamente a hipótese, o fato de que o seu
“paideuma” esteja claramente vinculado ao tema do livro, em suas mais
diversas acepções, antigas e atuais, pode ter-lhe aberto um público atraído
pelo tema e pela forma como dele se tratava, no ambiente tecnológico, nos
idos da década de 90; isso sem falar no fato de que essa relação entre as
tecnologias digitais e o livro muitas vezes, naquele momento, tratada em
termos de substituição deste por aquelas era um tema muito debatido,
inclusive fora dos círculos especializados. Um outro aspecto a se considerar
diz respeito ao fato de que Beiguelman compôs a sua obra como um projeto
comissionado por um museu, o que significa dizer que a obra, desde a sua
concepção, foi institucionalizada, ou seja, no momento em que vem a público
e se início a sua circulação, isso ocorre em um espaço que, de saída, lhe
confere legitimidade de “arte” algo que não aconteceu com o Museu do
essencial e do além disso, apenas muito recentemente incorporado a um acervo
de obras digitais restauradas por um laboratório ligado a uma organização
dedicada à literatura. E discuti como a vinculação de um autor ao campo
das artes tecnológicas ou da literatura digital tem impacto sobre a circulação,
a institucionalização e, portanto, a inserção de sua obra em um repertório, a
partir de sua legitimação. Isso significa dizer que, embora seja relevante a
acessibilidade da obra, ou seja, a sua disponibilidade online, em plenas
condições de ser fruída pelos leitores, esse não é o único aspecto a explicar o
maior ou menor alcance de sua circulação: o Museu se tornou inacessível
poucos anos e, ainda assim, foi muito pouco estudado e/ou mencionado, seja
no campo das artes tecnológicas, seja no campo dos estudos da literatura
digital.
Com vistas a deixar sinalizada a necessidade de retornar ao Museu do
essencial e do além disso em outra oportunidade é que procuro, a seguir, refletir
a respeito de sua formalização material. Como antes mencionei, o projeto de
Regina Célia Pinto foi programado em Flash e a configuração estética
resultante dessa opção técnica foi mantida pelo processo de restauração pelo
qual passou a obra. O aspecto estrutural que talvez chame mais a atenção
daquele que, nos dias de hoje, visita o site do Museu do essencial e do além disso é
o windowed style, um dos aspectos juntamente com a interatividade, o acesso
aleatório e a configuração multimídia característicos daquilo que Bolter e
Grusin (2000) denominaram como hypermediacy no contexto dos dispositivos
próprio museu. Disponível em: https://archive.the-next.eliterature.org/museum-of-the-
essential/museu/ensaios/ensaiosantigos/framensaios.htm.
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digitais. Se na origem da concepção do windowed style havia um objetivo de
transparência das janelas e da interface, o desenvolvimento do estilo, de
acordo com os autores, desviou-se disso e o que se vê nos projetos da época
é a construção de “[…] um espaço heterogêneo, competindo pela atenção do
espectador” (Bolter; Grusin, 2000: 32, tradução minha).
O uso do windowed style se ajusta muito bem à estrutura arquitetônica
desse museu peculiar. Cada janela cumpre a função de uma via de acesso a
salas distintas que, por conseguinte, possuem janelas de acesso a outras salas
que, por fim, dão acesso a obras que, algumas vezes, ainda podem remeter,
por meio de links externos, a espaços alheios aos do Museu. Cada janela que
se abre ao se clicar em um link permite ao leitor/navegador acessar um
universo cultural, linguístico, material e artístico distinto, como se pode aferir
pela captura de tela abaixo reproduzida, resultado da seguinte sequência de
links: mapa 2º andar poesia eletrônica Joesér Álvarez.
Figura 4. Pinto, Regina Célia. Captura de tela de janelas pop-ups
sobrepostas50, Museu do essencial e do além disso, 2001.
Para além de museu, mesmo, o projeto de Regina Célia Pinto talvez pudesse
ser melhor caracterizado como um portal de portais, que leva o leitor em
direção a distintas realizações artísticas, provenientes de diferentes lugares do
50 Imagem produzida pela autora a partir de navegação no Museu do essencial e do além disso. Disponível em:
https://archive.the-next.eliterature.org/museum-of-the-essential/#.
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mundo, em um congraçamento que se ampara em uma perspectiva de
abertura a respeito da internet e da tecnologia digital, mas também das
disciplinas e campos artísticos, das abordagens teóricas e metodológicas, dos
mais diferentes impulsos criativos. Uma ágora. Se nada é mais distante do
que a internet se tornou, hoje, talvez o projeto de Regina Célia Pinto possa
se caracterizar, contemporaneamente, também como um portal, através do
qual espiamos as possibilidades não realizadas da tecnologia digital.
Conclusão
As obras que discuti neste artigo foram produzidas em um momento em que
começavam a se popularizar não apenas a computação pessoal como também
a internet, no Brasil. Elas são paradigmáticas dos distintos projetos que
moviam-se em um cenário no qual a tecnologia digital, especificamente a
internet, era identificada como o locus do progresso a revolucionar as formas
de produção de cultura e de estabelecimento de vínculos sociais. O livro depois
do livro e O museu do essencial e do além disso, a despeito das diferenças que existem
entre essas obras, partem da vertigem das possibilidades que se abriam pelo
menos no nível do imaginário que se constituía acerca da internet e
colocam-se como uma espécie de bússola a guiar produtores e leitores. No
caso de O livro depois do livro, a partir da exposição da construção de um
repertório pessoal que se quer também público, reafirmando as maneiras
como distintos projetos estariam evidenciando as inúmeras possibilidades à
disposição das mentes criativas; no caso de O museu do essencial e do além disso,
algo na mesma direção, mas a partir de um investimento pessoal na
garimpagem de obras que se fazia a partir das novas maneiras de estabelecer
contato e de criar redes proporcionadas pelas então muito populares listas de
discussão.
Analisar tais obras, suas experiências com as linguagens que
incorporam, sem perder de vista o momento técnico que lhes deu ensejo e
com os quais elas dialogam, tanto no sentido da mobilização das
possibilidades técnicas que se abriam, quanto no sentido do enfrentamento
das contingências que tinham que enfrentar é também reconhecer que a
literatura digital precisa ser abordada a partir de uma abordagem localizada,
atenta aos contornos sociotécnicos, cujas especificidades têm relação com a
inextricabilidade da técnica no contexto capitalista. Além disso, uma análise
assim posta pode contribuir com uma reflexão crítica a respeito dos caminhos
recentes da tecnologia digital e da própria internet, cuja conformação
algorítmica e organização plataformizada tem se constituído como espaço de
características muito distintas daquele de há apenas 25 anos atrás - momento
de produção das obras analisadas - com impactos inegáveis na produção, na
circulação e na leitura da literatura digital.
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