A modernidade em questão

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Fabris, A. (2021). A modernidade em questão. Estudios Curatoriales. Retrieved from http://revistas.untref.edu.ar/index.php/rec/article/view/1272

Norteadas pelas perguntas “Moderno onde?” e “Moderno quando?”, Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros articulam um panorama das artes visuais no Brasil entre 1900 e 1937 na mostra que ficou exposta no Museu de Arte Moderna de São Paulo até 12 de dezembro. As datas escolhidas não são casuais. Com a primeira, as curadoras abordam a problemática do surgimento de manifestações modernas a partir de fins do século XIX, por meio de artistas como Abigail de Andrade, Estêvão Silva, Almeida Júnior, Eliseu Visconti, Manoel Santiago, Rodolfo Chambelland, Carlos Oswald, Henrique Alvim Corrêa, Artur Timóteo da Costa, Anita Malfatti, do fotógrafo Valério Vieira e do arquiteto Victor Dubugras. A segunda data tem uma significação política: representa a instauração do Estado Novo e simboliza uma mudança de rumo nas artes visuais com a adesão da maior parte dos artistas a linguagens realistas e a temas sociais, exemplificados pelos quadros Saída de oficina (1929), de Raimundo Cela, e Café (1935), de Candido Portinari, pelas xilogravuras Vila operária, Operário, Meninas de fábrica (datadas de 1935) e Vendedor de palmitos (1937), de Lívio Abramo, e pelo álbum A realidade brasileira (1930), de Emiliano Di Cavalcanti. 

A discussão sobre os alcances da arte moderna é organizada em três núcleos, nem sempre claramente delimitados. Ao primeiro segue-se o dos participantes da Semana de Arte Moderna. Além de Malfatti, que serve de elo entre o primeiro e o segundo segmento, constam dele Vicente do Rego Monteiro, John Graz, Joaquim do Rego Monteiro (que não participou do evento), Di Cavalcanti, Antonio García Moya, Wilhelm Haarberg, Ferrignac, Antonio Paim Vieira, Zina Aita, Vítor Brecheret e Regina Gomide Graz com uma tapeçaria da década de 1930. O terceiro núcleo conta com as presenças de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Antonio Gomide, Lasar Segall, Cícero Dias, Ismael Nery, Flávio de Carvalho (com três quadros e uma maquete arquitetônica), Portinari, Oswaldo Goeldi, Alberto Guignard, Alfredo Volpi, Cela, Abramo e do arquiteto Gregori Warchavchik.  

O segundo e o terceiro núcleos não apresentam grandes novidades em relação ao que já se conhece sobre o período, mas o primeiro requer alguns aprofundamentos críticos. De saída, é possível dizer que ele chama a atenção do visitante em virtude da inclusão de algumas obras pouco conhecidas. É o caso de A hora do pão (1889), de Abigail de Andrade; de O kosmo (1919), no qual Manoel Santiago alcança um resultado “abstrato”  pela fragmentação da pincelada e pela fixação de “resíduos icônicos” por meio da tinta, como salienta Angela Ancora da Luz; e de Ferreiro (1910), de Artur Timóteo da Costa, que marca o ingresso do tema do trabalhador na arte brasileira do período.  

Para além dessas novidades, o primeiro núcleo apresenta alguns problemas, a começar pela inclusão de uma figura que nada tem a ver com a arte brasileira: Alvim Corrêa. Embora nascido no Rio de Janeiro, o artista nunca atuou no Brasil, devendo ser estudado no âmbito do decadentismo franco-belga, em virtude da formação em Paris (1894-1895) e da transferência para a Bélgica (fins de 1898), onde se interessou pela produção de Félicien Rops, particularmente visível nos motivos femininos e nas cenas populares e libertinas. 

Uma problemática que as curadoras não exploraram a contento diz respeito à discussão sobre o possível marco inicial da modernidade na arte brasileira. Ele deve ser buscado na fixação da “dinâmica dos gestos” do caipira, feita por Almeida Júnior, como escrevia Gilda de Mello e Souza em 1974? Em Visconti, como asseverava Mário Pedrosa em 1950, ao destacar sua capacidade de fazer da tela um espaço de manifestação plástica pela importância conferida aos problemas puramente pictóricos e colorísticos? Ou em Belmiro de Almeida, cujo neoimpressionismo tinha como base a compreensão exata dos problemas luminosos, como propunha Pietro Maria Bardi em 1974? 

As obras selecionadas não permitem responder plenamente a essas indagações. Em O violeiro (1899), Almeida Júnior explora uma gestualidade codificada. Visconti, por sua vez, é representado por um quadro realista (Torso de menina, 1895), uma obra de compromisso entre linguagens diferentes (Autorretrato, 1902), e uma composição pontilhista como Avenida Central (c. 1908), caracterizada pelo uso de pinceladas multicoloridas que dissolvem edifícios, transeuntes e carruagens, e pela procura de efeitos atmosféricos. Quanto a Belmiro de Almeida, estranha-se sua ausência na exposição, já que ele foi um assíduo praticante do pontilhismo nas primeiras décadas do século XX, além de ser autor de dois quadros singulares como Maternidade em círculos (1908) e Mulher em círculos (1921), que dividiram a crítica brasileira. Enquanto Paulo Herkenhoff detecta no primeiro uma consciência moderna da superfície, bem mais radical de tudo o que foi exposto na Semana de Arte Moderna,  Aracy Amaral considera o segundo pseudofuturista, tendo sua opinião corroborada por José Roberto Teixeira Leite, para quem o pintor estaria ensaiando um flerte com o futurismo não por convicção, mas por pura blague. 

O terceiro problema está intimamente associado à própria concepção da exposição. No texto de apresentação, as curadoras afirmam que o objetivo da mostra não é “propor uma apreciação assertiva” dos eventos de fevereiro de 1922, e sim retomar o tema “evitando respostas prontas, cristalizadas pela voz corrente”. Ora, pelo menos desde a década de 1970, houve iniciativas que se debruçaram sobre a problemática da arte moderna, sem subscrever a narrativa articulada pelos modernistas. Em 1972, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand apresentou a exposição Semana de 22: antecedentes e consequências, articulada em três núcleos, nos quais foram expostas obras produzidas entre 1900 e 1951 (data da 1ª Bienal de São Paulo). Mais uma vez, o que interessa reter neste momento é a seleção  dos antecedentes, integrada por Belmiro de Almeida, Décio Villares, Visconti, João Timóteo da Costa, Antônio Parreiras, Benedito Calixto, Pedro Alexandrino, Alvim Corrêa, Segall, Malfatti e Di Cavalcanti. 

É impossível não estranhar a presença dos nomes de Parreiras, Calixto e Alexandrino entre os antecedentes, mas o que importa de fato é perceber que os organizadores da exposição de 1972 deslocaram o começo da modernidade nas artes visuais para o Rio de Janeiro, numa demonstração de distanciamento crítico das narrativas canônicas sobre o modernismo. Dois anos mais tarde, coube ao Museu Lasar Segall propor uma releitura das primeiras manifestações modernas no Brasil com a mostra Os precursores, dedicada a Belmiro de Almeida, Visconti e Artur Timóteo da Costa. Num artigo sobre a exposição, publicado no número 5 da revista Discurso (1974), Gilda de Mello e Souza propôs a inclusão de dois novos nomes no debate: Almeida Júnior e Georg Grimm. Finalmente, em 1975, o Museu Lasar Segall apresentou a mostra O modernismo, que, embora centrada num curto espaço temporal – 1917-1930 –, trouxe a público alguns artistas pouco lembrados como José Maria dos Reis Júnior, Domingos Toledo Piza, Paulo Rossi Osir, Ferrignac, Belmonte e Joaquim do Rego Monteiro, ao lado dos mais conhecidos Tarsila do Amaral, Segall, Brecheret, Goeldi, Gomide, Graz, Guignard, Malfatti, Volpi, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro e Cícero Dias.

A pergunta “Moderno quando?”, feita por Amaral e Barros em 2021, tinha, pois, começado a ser formulada na década de 1970, quando Bardi começou a chamar a atenção para artistas situados “numa brecha” não propriamente antiacadêmica, mas, assim mesmo, merecedores de atenção. E quando Mello e Souza detectava “um princípio vago de renovação” nas obras dos “precursores” selecionados pelo Museu Lasar Segall, portadores de “elementos esparsos de modernidade”, não captados pelos modernistas. A pergunta “Moderno onde?”, por sua vez, aponta para um grande centro de irradiação, o Rio de Janeiro, local de formação e de atuação de uma parcela considerável dos artistas presentes na exposição do MAM. Se Abigail de Andrade é produto do Liceu de Artes e Ofícios da então capital, Estêvão Silva, Almeida Júnior e Visconti formam-se na Academia Imperial de Belas Artes. Transformada em Escola Nacional de Belas Artes com o advento da República, a instituição é frequentada por Visconti, Santiago, Chambelland, Timóteo da Costa, Vicente do Rego Monteiro, Nery, Portinari, Dias e Cela. 

Muitos desses artistas complementam a própria formação no estrangeiro, sobretudo em Paris (Almeida Júnior, Visconti, Chambelland, Vicente do Rego Monteiro, Brecheret, Nery, Portinari, Cela e Dias) ou se tornam modernos naquela cidade, como Tarsila do Amaral. Outros formam-se diretamente fora do Brasil, multiplicando possíveis diálogos com diversas concepções de modernidade. A Itália está na base da formação de Oswald, Aita, Brecheret e Warchavchik e é determinante na conversão de Guignard ao modernismo. Graz, os irmãos Regina e Antônio Gomide e Goeldi estudam na Suíça. Outros locais de formação são a Alemanha (Haarberg, Segall, Malfatti, Guignard), a Inglaterra (Carvalho), os Estados Unidos (Malfatti) e a Argentina (Dubugras). A cidade de São Paulo ocupa um lugar mais do que secundário nesse cenário, pois apenas Moya e Brecheret estudaram em suas instituições, enquanto Ferrignac, Paim Vieira, Volpi e Abramo não receberam uma educação artística formal. Diante desse panorama, a indagação a ser feita seria: como São Paulo conseguiu realizar a Semana de Arte Moderna sem ser um centro de formação e de produção artística consistente? 

Uma vez que era intenção das curadoras retirar a centralidade de São Paulo graças à multiplicação de locais geográficos nos quais ocorreram manifestações do moderno, não parece coerente a decisão de restringir as amostras arquitetônicas às produções de Dubugras, Carvalho e Warchavchik, que nada mais fazem do que reiterar a ideia daquela primazia que pretendem questionar. De todo modo, a instauração do art nouveau em São Paulo não coube a Dubugras, mas a Carlos Ekman, que trouxe elementos da Sezession vienense, sobretudo no exterior de seus edifícios. No Rio de Janeiro, destaca-se a figura de Antonio Virzì, visto por Yves Bruand como uma espécie de Gaudí local pela síntese feliz entre características do modern style (formas originais, estranhas, irregulares; fantasia total na justaposição e superposição de volumes; jogo linear de diagonais e volutas  nas grades e balcões de ferro forjado) e reminiscências históricas. Virzì, que partilha outra característica com o arquiteto catalão – o uso da policromia –,   distingue-se pela busca de uma obra total, pois, em diversos momentos, se incumbe do projeto propriamente dito, dos estuques, dos ferros, do mobiliário e da decoração interna. 

Tendo em vista o arco temporal da exposição, é também possível estranhar a ausência de qualquer referência às primeiras manifestações de uma arquitetura modernista no Recife por intermédio de Luís Nunes (1934-1937) e no Rio de Janeiro, onde, a partir da década de 1930, se destacam as figuras de Lúcio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Ernani Vasconcelos, Marcelo e Milton Roberto, Carlos Leão e Oscar Niemeyer. Com exceção dos irmãos Roberto, os demais nomes se engajam no projeto do Ministério da Educação e Saúde, marco incontestável da nova arquitetura brasileira (1936-1943) não apenas em termos estruturais, mas por propor uma síntese artística com a incorporação de pinturas e azulejos (Portinari), esculturas (Bruno Giorgi, Antônio Celso e Jacques Lipchitz) e paisagismo (Roberto Burle Marx). 

Cabe ainda assinalar que na exposição houve pouco espaço para a problemática daquelas que Mário Barata definiu “tentativas de simbolismo”, nas quais se inscrevem Helios Seelinger e algumas obras de Visconti, Henrique Cavalleiro e Oswald. O primeiro Di Cavalcanti acaba sintetizando essa questão por meio do penumbrismo do pastel Amigos (1921) e dos desenhos do álbum Fantoches da meia-noite (1922),   simbolista-decadentista em termos temáticos, mas resultado da combinação de elementos art nouveau com características expressionistas em termos estilísticos, como aponta Ana Paula Simioni. Duas esculturas de Brecheret igualmente presentes na exposição – Templo da minha raça (1921) e Sóror Dolorosa (c. 1919-1920) – também podem ser inscritas nessa problemática. Inspirada no Livro de horas de Sóror Dolorosa: a que morreu de amor (1920), de Guilherme de Almeida, a segunda reforça os aspectos simbolistas dos poemas com o tom patético de sua concepção geral e com o ritmo decorativo e a estilização que caracterizam as duas figuras.

Numa mostra que tem como objetivo desvincular-se das narrativas oficiais, chama a atenção o fato de as curadoras não terem realçado a problemática do realismo sintético de Malfatti, que marca sua aproximação dos princípios da volta à ordem. Regina Teixeira de Barros abordou essa questão com propriedade quando foi curadora da mostra Anita Malfatti: 100 anos de arte moderna (2017), ao enfatizar que a contribuição da pintora ao modernismo não se resumia às inovações formais apresentadas em 1917. Ao contrário, ela se lançou em pesquisas de caráter experimental, no momento da volta à ordem, coincidente com a estadia em Paris entre 1923 e 1928, quando buscou o refinamento do métier, um novo repertório e travou um diálogo produtivo com artistas como Albert Marquet, Pierre Bonnard, Édouard Vuillard e Henri Matisse, dentre outros. 

Um último aspecto a ser salientado envolve a ausência de outras manifestações modernas, como a caricatura e as artes aplicadas, que poderiam ter fornecido elementos para uma visão mais articulada da problemática abarcada pela exposição. As duas modalidades teriam permitido repensar o termo moderno com maior profundidade,  estabelecendo uma conexão profícua com a dinâmica do cotidiano e com a difusão de novos padrões de percepção e de sensibilidade. Não faltam estudos sobre a relação entre caricatura e modernidade no Brasil, bastando lembrar as contribuições de Ana Maria Belluzzo (Voltolino e as raízes do modernismo, 1991) e de Monica Pimenta Velloso (Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes, 1996). 

No caso das artes aplicadas, poderia ser lembrado o “incipiente design” de Visconti, fruto de sua experiência francesa na Escola Guérin entre 1893 e 1897. Como lembra Teixeira Leite, a produção do artista, que se inspira em Eugène Grasset, abarca desenhos e projetos para capas de livros, estudos de vitrais, marchetaria, esmaltes, composições de panos recortados, papéis pintados, estofos de seda, cerâmicas e peças de ferro. Sua produção não é avessa a incorporar motivos nacionais (orquídea e flores do maracujá, da samambaia e do cajueiro), mas não chega a ser tão inovadora quanto a proposta de Teodoro Braga no livro A planta brasileira (copiada do natural) aplicada à ornamentação (1905). Interessado na fixação de uma identidade regional, o artista paraense, por meio da estilização, propõe formas de aplicação de motivos da flora, da fauna e da arte marajoara a joias, vasos, grades de ferro, dobradiças etc., alcançando o apogeu no Retiro marajoara, construído em São Paulo na década de 1930. 

As curadoras têm razão quando afirmam que a Semana de Arte Moderna faz parte “de um amplo e descontínuo processo que a extrapola, tanto temporal como territorialmente”. Deveriam, porém, ter reconhecido a produção de abordagens questionadoras desde a década de 1970, que começaram a problematizar ou relativizar a centralidade do modernismo paulista e a apontar para a existência de múltiplas manifestações inovadoras no Brasil, abrindo um leque de possibilidades para estudos pontuais, que deverão servir de embasamento a uma síntese ainda longe de ser alcançada. 

Artur Timóteo da Costa, Ferreiro, 1910, óleo sobre tela, 26 x 21 cm.
Coleção Max Perlingeiro, Rio de Janeiro.

 

Vicente do Rego Monteiro, Mulher diante do espelho, 1922, óleo sobre tela, 98,3 x 69,3 cm.
Coleção particular, Rio de Janeiro.

 

Tarsila do Amara, Carnaval em Madureira, 1924, óleo sobre tela, 76 x 63 cm.
Coleção Pinacoteca do Estado, São Paulo.

 

Moderno quando? Moderno onde? 4 de septiembre al 12 de diciembre de 2021.
Museu de Arte Moderna de São Paulo.